Tempo sem cruz | Poemas de Flora Miguel

Conexões maravilhosas. De São Paulo, onde passava uns dias, meu amigo Jorge LZ me fez essa ponte generosa com a poeta Flora Miguel, e com sua poesia. Hoje a Kuruma’tá publica, com alegria, cinco poema do livro Tempo sem cruz, que Flora lançou recentemente, pela Editora Primata.


Nestes poemas, as formas de contragolpear o bloqueio do futuro carregam uma espécie de ambivalência produtiva, estratégia lírica desfolhada em uma bandeira ao mesmo tempo política e afetiva. Se a consciência dos limites (os nossos e os do mundo) se impõem em números e dados objetivos, a força das coisas miúdas também é reconhecida, entre outras coisas, na elegância guerreira das formigas: “folha que é escudo!/ graveto que é lança!”.

Da apresentação de Andrei Reina
jornalista de arte e cultura e mestrando
em sociologia na USP, com pesquisa
sobre a teoria crítica brasileira.

tempo sem cruz

alguém te liga na manhãzinha
uma voz de plástico derretido
afônica
chega até a sua orelha

e você pensa em Olga
em Priscila em Luanda
Tânia Bruna Mari
Sandra

você pensa em toda a
revolução social
que é um útero dizendo
não
dizendo
não agora
dizendo shiu
dizendo quando como e por que
dizendo escuta,
apesar da guerra
há maneiras
de sangrar

e ainda que você tenha lido que foram identificados
770 óbitos maternos com causa básica
aborto
no SIM de 2006 a 2015
que se somados aos 220 óbitos que têm o aborto
como uma das causas mencionadas
representariam um acréscimo de aprox. 30%
no total de óbitos associados ao aborto
no mesmo período
fora a subnotificação,
você pensa mais uma viva
renova votos na causa
[errada?]
quer chorar
quer sonhar
acordada


refugiados

sentir a praça pelos pés
discutir Tolstói com as mãos

também desejamos terra

terra é carne que quanto
mais se reparte
mais se tem

das nuvens
nenhuma palavra:
pacto de cumplicidade


película de horror

nessa parte arrancada se senta um gato
ronrona e aprendo [o diabo é uma mulher
chamada Siri e tem sempre tempo
para o conhecimento]
que gatos domésticos
ronronam em frequência máxima de 30,2hz
e que diferentemente do miado
o ronronar produz um som de timbre grave
audível somente a distâncias curtas

nessa parte rasgada
à faca afiada
cachorros fazem festas

esse trecho esse treco oco
é pista para uma mosca
que depois de toda vida dedicada à transmutação envelhece como hospedeira de agentes patogênicos
como qualquer um de nós

nesse vão se chocam todas as quinas
enfiam dedos fincam,
seguros
e inseguros,
os dias

talvez não seja a única a sentir
a confusa presença do que é ausente
instrumento desafinado aposentado
lidando com seus ruídos


formiga

1
estender a canga
intervir
no trajeto das formigas

por entre as dobras
de chita
travar batalha
minimalista

2
A estudante de Pós-Doutorado em Entomologia do Instituto Nacional de Pesquisa da Biodiversidade Florestal, Luana C., foi responsável por um estudo inédito que monitora o impacto de uma fábrica têxtil de larga escala na fauna das formigas

3
desde a infância Luana C.
foi extremamente sensível

fazia dança aeróbica e clássica,
brincava sempre de teatro
– atriz é porvir
desenhava histórias sobre
seres fantásticos
em pequenos recortes
de papel furta-cor

a cada ocasião considerada especial
compunha música própria
letra e melodia
e se fazia um dia de sol e calor
coreografava a criação

costumava dizer que seria cientista
mesmo com a desenvoltura para as artes
em pura combustão

passava horas observando as galinhas
do quintal
conversava piu, piu, piá
no balanço de pneu
pendurado em enorme tronco de árvore

anotava suas considerações
num grande caderno de folhas mistas tons
de terra e céu
e encadernação feita pela mãe
com maquinário próprio
instalado na lavanderia da família
das formigas,
ao interagir forçosamente
mas ainda com o notório embaraço,
admirava a elegância:
folha que é escudo!
graveto que é lança!

4
Luana C. morreu
já tem sete anos
o rim perfurado
pela bala do milico
policializado

morreu e eu a procuro
procuro e a reinvento
que a atriz merece o melhor
papel
tons de terra e céu
pneu nunca de moto
parada em nenhuma autopista
prêmio Nobel:
melhor cientista

5
a gente sem escudo
nem lança

sem cortina sem regente

o furo agudo estridente
no canto da nossa barriga

a polícia mata a gente
como a gente amassa formiga


um faquir no viaduto

na cama de pedras pontiagudas
o peito já rasgado
não tem mistério em sorrir
tamanduá
espantar pombos cerrar punhos
ver no que dá

magia é a fumaça da moto
andando com a moto
a moto em zigue zague
a troco de quê
ninguém
sabe

a moto,
palito de fósforo
riscando sua noite com nuvens

[O viaduto se transforma num céu. Sinos tocam.]

feito o arco de luz que acompanha
a porta da sala batendo na cara
cala
como quem jaz
canta
como quem chora

no dia em que eu vim embora
não tinha nada demais


Flora Miguel é jornalista, trabalhadora da cultura, poeta. Tem textos esparramados por veículos literários no Brasil, Portugal e México.