Elis e Karen, 1981

É com alegria gigante que a gente recebe na Kuruma’tá, o escritor, o amigo, Rodrigo Santos, autor dos livros Macumba, Carcará, agraciado com o Prêmio Kuruma’tá de melhor livro de 2021, e o recente Fogo nas Encruzilhadas, entre muitos contos publicados na mais diversas antologias!

Texto de Rodrigo Santos

Foto: Anibal Philot / agência O Globo 1981

— Vambora, meu povo, vamos dar adeus a 1981!

Eu me escorava em um canto, esperando o White Horse falsificado se diluir um pouco no gelo e se tornar minimamente agradável, enquanto a socialite Dorinda de Assis Garcia borboletava pelos convidados como uma fada — uma fada bêbada, é bem verdade — conjurando o ano bom que se iniciava, em sua cobertura em Copacabana.

Eu havia publicado algumas crônicas no Jornal do Brasil, sobre cultura em geral, inclusive música, o que me havia angariado o convite de Nelson Motta para aquela festa. “Precisamos de artistas, escritores, poetas! Essas festas são o auge da caretice carioca, precisamos de amor!”, me dissera ao telefone que eu mal conseguia pagar, naquele kitinete da Rua da Conceição, em Niterói.

Foi assim que, do nada, o escritor de São Gonçalo debutava no grand monde, com glamour e sem dinheiro. A primeira barca de volta para Niterói saía às cinco e meia da manhã — era a minha meta final — enquanto eu tentava fazer contato com algum editor que se dispusesse a publicar meu romance de estreia, o “Mágoa”.

“Parece um romance de alguém que não é romancista”, havia me dito o Cléber Rocha, do jornal “O Fluminense”, o mais vendido em Niterói, cidade que havia sido capital do Estado e que agora amargava uma segunda divisão política. Mesmo assim, era melhor do que ficar em São Gonçalo, minha cidade natal, sendo reduzida gradativamente de cidade industrial para cidade dormitório. Mas nada disso importava naquele momento, ali eu tinha uísque (mesmo que de procedência duvidosa) e canapés. Meu último réveillon tinha sido na portaria do prédio, com coxinhas e Brahma Chopp quente, então eu estava no lucro.

Rostos conhecidos circulavam na multidão, como era de se esperar. Nelsinho passou e me apresentou ao José Augusto, grande compositor. “Tão grande quanto o Roberto, bicho!”, dizia ele. “Este é o escritor de que te falei”, complementava, apenas para trocarmos o olhar condescendente de quem está na pista há muito tempo.
Eu estava prestes a cumprimentar o craque Zico e sua esposa, a Sandra, quando Nelson me chamou num canto. O Flamengo havia acabado de ganhar o campeonato mundial, e eu, como bom rubro-negro (quase me chamei Mengálvio, vejam só) ansiava pelo momento de apertar a mão do Galo. Até porque estávamos entrando em ano de Copa, e não tínhamos tanta certeza de um caneco desde 1970! Mas Nelsinho tinha outros planos.

— Esse aqui é o escritor de que falei, Rodrigo Santos. De São Gonçalo.

A pequena notável então abriu o sorriso com os olhos, e exibiu os dentes pequenos. Eu já entrara em anos, não me deixava levar pelas modas musicais desde a decepção com a bossa nova, mas Elis era diferente. Transcendente, reluzente, picante.
Não lembro exatamente do que falei (aquele White Horse certamente era paraguaio), mas não acredito que tenha conseguido me comunicar com muita clareza. Elis vinha com o César, seu marido — e grande pianista — e as crianças. João Marcelo era grande, 11 anos já, parecia querer sair dali pra brincar, mas tinha que olhar seus irmãos menores, o Pedro e a Maria, de 6 e 4 anos.

“Gostei muito da versão de Carinhoso que você fez com o Delmiro”, falei com o César, meio balbuciante, mas não acredito que ele tenha prestado muita atenção. João Marcelo tinha sumido, Elis segurava o Pedro pela mão, Maria chorava. Voltei para o copo vazio, e acendi um Continental sem filtro.

A festa se completava em volume e espécie. Renée de Vielmond transitava e exibia o luxo de estar no ar com a novela “Brilhante”. Todos esperavam por Tarcísio Meira, o protagonista, mas ele não apareceu. Lucinha Lins e Cláudio Tovar exibiam sorrisos solares, apagando a vaia do recente festival. Eu fiquei conversando com o César sobre jazz, MPB e escrituras. Lembro inclusive de conversamos sobre mitos gregos na literatura, e acredito até que tenhamos falado sobre Édipo e Jocasta, que anos depois seriam tema de novela e trilha sonora.

Deviam ser já quase onze horas quando eles entraram. O Brasil ainda era uma colônia provinciana que se recusava a entrar nos anos 80, então não se surpreenda que gringos — ainda mais gringos famosos — nos deixassem extasiados. Ele, de cabelinho Príncipe Valente e smoking, branco como uma vela, destoava. Ela, uma beleza no olhar e no sorriso, mas um manequim vazio em seu vestido azul de franjas, despertava um misto de pena e amor de pai em todos nós, quase pedindo um abraço. Os Carpenters.

Nelsinho, onipresente, em poucos minutos nos unia.

— Essa é a Karen, e seu irmão Richard. Richard! — Esse já havia se esgueirado com um novo amigo, um moreno de Copacabana que eu apostava ser um desses arruaceiros que chamavam de Gracie.
Foi quando a pequena Maria correu e puxou o vestido de Karen, trazendo sua mãe a tiracolo.
— Olha, que criança linda! — vou poupar vocês de anglicismos, a tradução é gratuita na maior parte do tempo.
Maria apenas sorriu, envergonhada, e escondeu o rosto na barra do vestido da mãe. Usava uma presilha vermelha nos cabelos, combinando com seus óculos e sua bochecha rosada.
— Karen, esse é o César, grande pianista.
— Ah, olá!
— Vou deixar você aí, tenho que falar aqui com o pessoal.
Nelsinho então nos deixou a sós. Eu, um escritor provinciano e penetra, batendo um papo com Karen Carpenter e César Camargo Mariano. E Elis.
— Ah, você é a Elis Regina! — Disse Karen. — Ouvi falar de você. Lembro de ter visto um vídeo seu, cantando uma música chamada… Desculpa, meu português é péssimo. Como nosso país, é isso mesmo?
Elis, que tirava uma colher de plástico da mão de Maria, entrou na conversa.
— Isso, isso mesmo. Como nossos pais.
— Quando cantei com a Ella também me falou muito bem do Brasil… Falou-me sobre você, sobre Elza Soares. Até brincou com a semelhança dos nomes, Ella e Elis.

E o papo engrenou. Elis estava em cartaz no Canecão com o show “Trem Azul”, de seu último disco; Karen e o irmão haviam feito um show nas Casas Sendas, no mês anterior. Para o mundo, a turnê dos Carpenters tinha acabado em novembro, mas os irmãos (muito mais por insistência do Richard, devido a sua amizade com o Badu, dos Tincoãs) decidiram ficar para o réveillon de Copacabana — que não tinha ainda a grande queima de fogos, mas já trazia suas multidões vestidas de branco para saudar Iemanjá, independente do credo.

Eu ainda tentei entrar no papo umas duas vezes — quando falavam de praias, não pude deixar de vender Itacoatiara, claro — mas a estupefação era maior. Pedro e Maria estavam brigando por algum motivo, e eu separei, protegendo a menina, que sorriu pra mim.

— Então, você é escritor? Escreve o quê?
Richard Carpenter havia se desvencilhado de seu boy e decidiu socializar com os outros mortais.
— Romance — novel, isn´t it? — Poemas.
— Ah, eu gosto de poemas! Sobre o que fala seu romance? Sobre carnaval, futebol? Já sei, sobre macumba? — E abriu o seu sorriso marca registrada.
Os gringos sempre acham que a gente vive sambando, rezando, fazendo embaixadinha e bebendo caipirinha.
— Não, não. Mas pode deixar, no meu próximo livro eu falo sobre macumba. — A ideia não era de todo má, não é?
— Ah, awesome! Batmacumba yê yê, batmacumba obá! — Ainda bem que ele era pianista.
— Você curte um pó? Caía bem agora…
— Pó? Não, obrigado. Mas pera aí que vou ver se descolo um para você.

Nem foi difícil, em menos de dez minutos Nelsinho trazia Daniel Filho, que salvava a gente. “Você vai ficar só nesse cavalo paraguaio aí?”, ainda fez troça da minha cara. Mas meu negócio era só birita mesmo. Talvez um fino, mas não queria perder nada daquela noite.

— Vamos todos saudar 1982, o melhor ano de nossas vidas está chegando! — Dorinda assim chamava a todos para o espetáculo da queima de fogos. Olhei para o relógio, faltavam poucos minutos para a meia-noite. Garrafas de champanhe e taças começavam a passar de mão em mão, e uma logo escolheu a minha mão como pouso e repouso, amém.

Fomos para a sacada, um grupo feliz entre tantos outros. Elis ria, jogando a cabeça para trás, e bebia o champanhe, brindando com Karen. Richard coçava o nariz e olhava em volta, à procura de algo (ou alguém?). César segurava em seu colo o pequeno Pedro, que já dormia. Pelo canto do olho eu vi o Sérgio Machado, filho de Seu Alfredo, um dos fundadores da editora Record. “Bom, não vim aqui apenas pra beber champanhe”, mas não consegui me desvencilhar do grupo pois Maria segurava a minha mão.

Após a contagem regressiva, o mundo se iluminou em barulho, com fogos e saudações efusivas. Maria, com medo, pulou no meu colo, e juntos vimos 1982 nascer, entre gritos de “Feliz Ano Novo!” e taças se partindo. Karen nos deu um abraço conjunto, amassando a menina e lhe dando um beijo estalado na bochecha — que Maria logo limpou com as costas da mão.

— Quem é essa moça?
— É a segunda maior cantora do mundo. — Eu falei.
— Mamãe é a primeira?
Apenas sorri.
— Você também vai ser cantora quando crescer?
— Eu não. — respondeu, balançando a cabeça com força e pulando do meu colo e indo pegar na mão da mãe.

Eu tinha que seguir com o meu plano inicial, Sérgio já me escapava do foco. Dei um beijo na cabeça da menina Maria, e cumprimentei Elis, com felicitações de Ano Novo. Karen Carpenter chegou, com mais uma taça de champanhe. Eu segurava a minha garrafa fechada com egoísmo de quem tinha o ano de 1982 pela frente para beber Brahma Chopp quente.

— Nelsinho! — Pronto, achei a ponte que me levaria ao Sérgio. Mas não podia ir embora sem me despedir da estrela estadunidense.
— Karen! Prazer viu? Olha, deixa eu te dizer uma coisa. — Peguei no ombro de Elis e a virei na nossa direção. — Você é maravilhosa, mas a nossa superstar é essa aqui, tá? — e fugi para o salão, saindo com Nelsinho à procura daquele que poderia finalmente publicar o meu primeiro livro, o “Mágoa”.

O resto é resto. O ano de 1982 acabou não sendo o melhor ano de nossas vidas, como a nossa anfitriã previu. Menos de dois meses depois, o mundo perdia a sua maior cantora, a mãe de João, Pedro e Maria. A melhor seleção brasileira de todos os tempos não trouxe a taça pra casa e, pra piorar, no ano seguinte a segunda maior cantora também nos deixou. Não consegui publicar o “Mágoa” pela Record — o que não significou muito, o livro foi um fracasso. Ironicamente, anos depois, lancei um livro chamado “Macumba”, que dediquei ao Richard pela ideia. Cheguei a lhe enviar um exemplar, mas nunca obtive resposta.

E a pequena Maria, de óculos e presilha de cabelos vermelhos, medo de fogos de artifício e bochecha rosada, virou um grande cantora, como aquelas que saudaram a chegada do ano de 1982 na sacada da cobertura de Dorinda de Assis Garcia, acompanhadas de um escritor medíocre — porém esforçado — de São Gonçalo.