Cordel: edições, experimentos, experiências e consagração

Por Aderaldo Luciano


A maior casa editorial de cordel do mundo foi a Editora Prelúdio, de São Paulo, cuja herança sedimentou a Editora Luzeiro. Alguns editores nordestinos, como José Bernardo da Silva, Manoel Caboclo e Manoel Camilo dos Santos, chegaram a culpar a Luzeiro pela derrocada de suas atividades. Interpretavam as capas coloridas, o papel de melhor qualidade, as ilustrações, o formato de livro e a produção industrial como atrativos e saídas editoriais imbatíveis nas bancas de jornais e nas feiras, com o trabalho dos folheteiros.

Em Belém do Pará, por volta dos anos 20 do século passado, outra editora descobriria o cordel e partiria para a editoração e publicação mais elaborada, em relação ao produto confeccionado no Nordeste: a Guajarina. Fugia, como a Luzeiro, da forma artesanal, substituiria a xilogravura por ilustrações de artistas do traço e da pena, escolheria um tipo de papel melhor para imprimir os versos rimados, as histórias, narradas e pensadas pelos poetas. Seus livretos inundaram a Amazônia e os estados do Norte.

As publicações atuais se esparramam por diversos formatos, respeitando a forma criada por Leandro Gomes de Barros. Tin Tin Alves, no Embu das Artes-SP, produziu seu livro Quintadiano de maneira totalmente diferente do que se vê em termos de cordel: lhe deu um formato em 20cm x 20cm, uma ilustração de capa alegórica e mágica. Paola Torres, direto de Fortaleza-CE, trouxe um formato em 14,5cm X 20,5cm para sua homenagem a Maria das Neves Batista Pimentel. E Nando Poeta, Natal-RN, uma antologia sobre o cangaço em 16cm x 23cm. A seguir algumas palavras sobre essas experiências.

Tin Tin Alves: poesia é trabalho e celebração

As águas do Rio Pampã correm direto para o Mucuri. São águas doces, cristalinas na nascente, benfazejas em todo seu percurso. Banham, com vocação para a vida, as terras vastas e potentes do nordeste de Minas Gerais. Chegam a pentear a cabeleira da Pedra da velha Manoela, monumento natural, fazendo cócegas nas nuvens. À civilização nascida em suas margens deu-se o nome de Fronteira dos Vales. Nome mais poético não se encontra para um arruado onde o vento canta cantigas de ninar às crianças inquietas no fundo da noite. Os vales fronteiriços são muito mais que vales, são acidentes entre as almas leves e os espíritos incansáveis.

Em 1955, Minas Gerais se preparava para dar ao Brasil o novo presidente, Juscelino, de largo sorriso. Foi em 3 de outubro. No entanto alguns dias antes, numa conflagração maravilhosa entre a Lua, que se apresentava cheia, e Júpiter, com seu olho príncipe, nascera Nilton Francisco Alves. Rebento mínimo, mas azougado. Menino frágil, mas inquieto. Seu nome fez lembrar o antigo físico observador da Lei da Gravidade. Mas também o santo dos naturais, cuidador da natureza, amigo dos bichos dos céus e da terra. Era 29 de setembro e a primavera, sucinta e pródiga, acariciava as flores. O ventre do céu, mesmo sob o raio lunar e os uivos de algum animalzinho sonâmbulo, protuberava o Cinturão de Órion.

Passados os anos e os arcanos, Nilton virou Tin Tin, vestiu roupa de poeta, namorou as musas, contou-lhes lorotas, anedotas e esquisitices, recebeu delas um passaporte. A partir daí, como outro poeta mineiro, partiu em busca da poesia. Comprendeu que a poesia é intangível, é uma assunção, talvez um transe. Os comuns a chamarão de inspiração. Tin Tin percebeu-lhe mais: observou-a como um processo. Este livro, materializado aqui sobre as linhas da vida de nossas mãos, é um produto desse processo. Sistema cabalístico conjugado entre o 3, de seus haicais, e o 7 de seus versos e estrofes, de inspiração telúrica e transcendental. Poesia é trabalho, nos disse alguém mais observador.

Tin Tin trabalhou seus poemas, ourives beneditino como ousou Bilac. Sistematizou seus temas, catador de pérolas qual Paes Leme, mas sem o engano final. Em um dia muito longe do futuro, no fundo do quintal universal, algum meteoro se distanciará de nós, e cruzará o céu do passado. Será a estrela riscando a noite daquele prateado céu de 1955, setembro. A estrela anunciadora. Nascera e nascerá um poeta. A marca em seu corpo é o diálogo com a eternidade. Hoje, ao ler seus poemas, lembrando Bashô e Barros, nos animamos. O caminho Peabiru, sua encruzilhada e sua anunciação, agasalharam Tin Tin no Embu das Artes. A promessa da espada em brasa, a poesia em seu estado sólido, é o marco plantado neste livro, esperança, denúncia e celebração.

Paola Torres: na encruzilhada dos tempos, duas poetas se encontram

Francisco das Chagas Batista, um dos pioneiros do cordel, foi também um dos pioneiros como editor na Paraíba do Norte. Estabeleceu em João Pessoa sua Livraria Popular Editora na Rua da República. Em sua residência, anexa à Editora, criaria seus filhos e filhas. Entre estas, Maria das Neves Batista Pimentel, nascida em 1913. Vinte e cinco anos depois, Maria das Neves publicaria seu folheto O Violino do Diabo e o assinaria com o nome de seu marido Altino Alagoano.

Coube à professora Maristela Barbosa de Mendonça nos presentear com a história de vida e com a obra de Maria das Neves no livro Uma Voz Feminina no Mundo do Folheto, de 1993, fruto de sua dissertação acadêmica, apresentada por Heloísa Buarque de Holanda. As mulheres, como sabemos, são pioneiras nos estudos sobre o fenômeno cordelístico. Citem-se Jerusa Pires Ferreira e Márcia Abreu, representando todo o aquífero feminino pesquisador. Com o livro de Maristela também tomamos conhecimento dessa letra cordelística fundadora.

Agora, pela poesia de Paola Torres, encontramos Maria das Neves assunta à personagem cordelial. Une-se no arcabouço poético às personagens arquetípicas de nossa literatura mais genuína. Funde-se com a própria arte que presenciou ser impressa por seu pai. Converte-se em muro de arrimo de nossa tradição. Coloca-se como protetora e guardiã do legado das mulheres dentro dos muros machistas ainda existentes no movimento cordélico nacional. É salutar que se mude em poesia pela pena de Paola. E direi o porquê.

Paola Torres foi presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Obrigada a renunciar por conta das manobras machistas e bem trabalhadas de meia dúzia de machos da antiga diretoria que nunca lhe respeitaram a autoridade, seja não lhe fornecendo documentos fundamentais para assumir de fato o seu mandato, seja pelo boicote às suas iniciativas. A presença de Paola nos ofertava a oportunidade de soprar a camada de pó e machismo existente por lá. Chegará o dia de vermos o ouro brilhando, sabemos.

Unem-se, nessas páginas, nesses versos rezando a tradição, nesse folheto anunciador, a vida e a obra de duas poetas: a fundadora da lírica feminina na poesia do povo e a continuadora da epopeia feminista no cordel brasileiro. Um caminho de vem desde o nascimento de Maria das Neves, herdeira poética dos antigos cantadores do sertão do Teixeira, até desembarcar em Caruaru, onde vivia dona Priscila, a bisavó de Paola, que lhe apresentou os primeiros folhetos, chegando a Fortaleza, onde a autora deste reside. Quando as mulheres se encontram no cordel, o cordel se encontra consigo mesmo.

Nando Poeta: cangaço, um tema e várias possibilidades

Caro leitor, eu pretendo
Ocupar algum espaço
Deixado por quem, outrora,
Escreveu sobre o cangaço.
E um perfil mais completo
Desse tema agora eu traço.
(A saga de Jesuíno Brilhante)

Este livro é uma antologia reunindo textos originalmente publicados entre 2010 e 2014. São os poemas cordelísticos sobre o cangaço e seus personagens. Nando Poeta cumpriu com eles a sina tradicional do cordel brasileiro de falar, em suas estrofes e versos formais, das realidades e ficções sobre esse período rico e fatídico do nordeste do Brasil. A tradição literária, em prosa (ficção e documental) e poesia (em lírica e épica), já cumprira seu intento desde Franklin Távora, com O cabeleira, vindo a José Américo de Almeida, com Coiteiros, e outros tantos observadores que encontraram no cangaço vastíssima estrela narrativa.

No Nordeste brasileiro
Travou-se uma grande luta.
A contenda entre as famílias
Foi gerando uma disputa,
Dando origem ao cangaço,
Na bala e na força bruta.
(O cangaço e o lendário Lampião)

Na poesia do povo, na base escrita ou na pauta oral, em poemas de cordel e em canções laudatórias, os personagens desse ato regional nordestino, amplificaram as terras e os céus, os corações e os destinos. Especificamente no cordel, os fundadores Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, cantaram o legendário Antonio Silvino, nas décadas de 1910 e 1920. Logo depois, entre o final da década de 1950 e início da década de 1970, Manoel D’Almeida Filho e Antonio Teodoro dos Santos, tomaram em suas canetas as vicissitudes de Virgolino Ferreira e seu bando de cangaceiros.

Após descrever Corisco,
E o lendário Lampião.
O Jesuíno Brilhante
Rendeu outra narração.
Agora vem Jararaca
Nessa nova inspiração.
(Jararaca, o cangaceiro que virou santo)

O cinema, por volta de 1950 e 1960, também descobriria a seara cangacioneira e traria para as telas mundiais, ancoradas no Cinema Novo, O Cangaceiro, de Lima Barreto, e A morte comanda o cangaço, de Carlos Coimbra e Walter Guimarães Motta (indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro), passando por Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, chegando ao Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, este de 1996. O tema está sempre a se remexer e oferecer-se para degustação artística, filosófica, sociológica e antropológica. Neste momento, em algum lugar do Brasil alguém está mergulhado em suas páginas.

Vamos viajar conosco
No percurso da história
Das mulheres no cangaço
Inserção e trajetória,
As mudanças provocadas,
Suas dores, sua glória.
(As mulheres no cangaço)

O sociólogo Nando Poeta, vestido do sol cordelístico, pesquisou o caminho, comprou livros, pesquisou fontes, viu filmes, escrutinou outros poetas, desde A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, até Lampião e seu escudo invisível, de Costa Sena, para escrever, sozinho ou em parceria com Varneci Nascimento, este documento a que intitulou Dias-Noites-Madrugadas: vida, paixão e sangue no sertão do cangaço. Salientamos que os poemas reunidos estão impressos como o foram nos originais, sem atualização ou revisão profunda, para que os leitores e pesquisadores dos temas cordel e cangaço observem o crescimento, o fazer poético de um autor que se pauta pela pesquisa.

À época todos pensaram
Que a morte de Lampião
Poria fim ao cangaço
Sendo enterrado no chão
Sem deixar nenhum vestígio
Por todo vasto sertão.
(Corisco, o vingador de Lampião)

Ressalte-se que um dos textos ( Maria Bonita, a paixão de Lampião) é uma produção de 2018 inédita em livro, publicada especialmente nesta antologia. É de muita importância sua presença pois sendo um texto mais recente será possível aos leitores, observadores e críticos analisar a trajetória poética do autor, as mudanças em sua escrita, possíveis avanços e encaminhamentos. Com esta reunião sobre o cangaço, Nando Poeta fecha um ciclo e abre outro: o de reflexão sobre as potencialidades do cordel brasileiro. Diga-se, ainda, ser aqui o primeiro título do selo Leandro, destinado a publicações especiais em cordel, homenageando o primeiro sem segundo Leandro Gomes de Barros, o pai do sistema cordelístico brasileiro.

Uma história de amor
Deu outro rumo ao cangaço
Sendo as mulheres aceitas
Aos poucos ganham espaço
O cangaceiro é flechado
Totalmente dominado
Por chamego, beijo, abraço.
(Maria Bonita, a paixão de Lampião)