Há mais coisas entre o cangaço e a mulher do que possa imaginar um vão brincante de carnaval

Texto de Aurora Miranda Leão


A Marquês de Sapucaí, palco do principal desfile de carnaval do país – Foto de GRES Acadêmicos de Santa Cruz

Soa como pancada no estômago constatar, ainda nos dias de hoje, um silêncio negligente e até certa louvação à cultura do estupro. Isso me vem a propósito da concomitância entre minhas leituras atuais e o desfile de carnaval do grupo especial na Marquês de Sapucaí. Assim, em que pesem todas as qualidades estéticas e musicais do desfile da Imperatriz Leopoldinense, não é possível compactuar com o mote do enredo sem colocar algumas questões para reflexão.

As ações humanas não podem ser vistas ou entendidas apartadas de seus contextos, desmembradas de suas implicações políticas, desatreladas de suas ligações com o passado e o futuro. Também eles nos constituem: o presente não existe sem um e outro. Logo, causa calafrios ver, ler ou ouvir alguém defender Lampião e seu bando porque imediatamente transporto-me aos dolorosos anos de sofrimento e angústia, dor e pânico vividos por tantas centenas de sertanejos enquanto durou o cangaço. O martírio foi imenso, sobretudo para as mulheres.

Diversos jornais da época, até mesmo o New York Times, registram a euforia gerada quando o bando foi extinto, em 1938. Evidentemente, não concordamos com a forma virulenta como os cangaceiros foram mortos. A violência é por si só uma coisa deletéria, sob qualquer aspecto. Violência não se acaba com mais violência, ódio não se combate provocando mais ódio, não há vingança que compense a dor da perda de alguém querido, mas daí a jogar confetes para o Rei do Cangaço e elogiar seu legado, vai uma distância colossal, para a qual não tenho fôlego, aptidão nem caráter.

É certo que a cultura sertaneja – através do cordel, das músicas, das xilogravuras e de tantas outras visualidades -, deu ao cangaço uma versão esteticamente rica e poderosa – sou das que amam Xilo e Literatura de Cordel -, mas entre o cangaço apropriado pela manifestação artística e o que de fato aconteceu nos sertões do Nordeste sob o jugo de Lampião, há distinções notórias.

Em tempos de revisitar o passado, em salutar e oportuna laboração sobre construções narrativas que contam o pretérito mas mitificam a essência do mal, é mister rever o que a imprensa e a história registram sobre esse período tão tenebroso da vida brasileira. Passa da hora, inclusive, de recontar a fantasiosa versão que transforma assassino em mito e violência em masculinidade. Sendo o carnaval “Uma ferramenta muito poderosa para trazer consciência, e não alienação”, como afirma Rogério Oliveira1, que comanda a produtora Pipoca, promotora de alguns dos principais blocos de São Paulo, Rio, Olinda e Belo Horizonte, teria sido muito impactante ver uma escola homenagear o Nordeste evidenciando a violência de gênero2, ainda tão forte na maior região do país.

Chegamos em 2018 a bordo de ideias nefastas, conflagradas pela ignorância de muitos e perpetradas com o objetivo de confundir fatos históricos e tumultuar o entendimento de noções como direitos humanos, respeito à coletividade e às instituições democráticas. Não foi sem muito assombro que vimos pessoas, das mais variadas idades e classes sociais, negando a ditadura, subestimando o holocausto, chamando truculência de mi-mi-mi, negando a ferocidade, contemporizando ataques sórdidos à imprensa e tantas outras categorias profissionais, abastecendo de forma ignóbil uma imensa teia de fabricantes do autoritarismo e paladinos de formas nefastas de injustiças e iniquidades.

Atravessamos quatro tormentosos anos assim – tendo que conviver com aberrações que julgávamos não ter mais campo para florescer -, nos quais tiveram espaço e apoio uma série de violências cotidianas, seja contra cientistas, educadores, profissionais da saúde, médicos, jornalistas, mulheres, negros, indígenas, parlamentares, artistas, e nem mesmo ministros da Corte Suprema foram poupados. O retrocesso político ganhou corpo como nunca antes visto na história do país desde a redemocratização e o temor de dias piores pautou nossa agenda diária. A Democracia vivenciou dias de ataques torpes às instituições que a alicerçam. Felizmente, sobreviveu e mostrou força.

Por essas e outras, presente e passado vivem entrelaçados. Há capítulos deploráveis somando períodos de massacre (como o narrado por Euclides da Cunha em “Os sertões”, sua obra-prima, de 1902); morticínios; violências (como no cangaço), esmagamento e opressão às mulheres, crianças, indígenas, velhos, pobres, quilombolas e comunidade LGBTQIAPN+, logo, o pretérito não está guardado em depósito a sete chaves: convive conosco todo dia, mobiliza, interfere, acende luzes, aponta caminhos e se intromete diariamente na vida de todos nós.

Até quando esses vestígios perniciosos continuarão sendo negligenciados? Até quando há de persistir a inconcebível glorificação dos violadores da lei, e criminosos seguirão sendo alvo de homenagem, como se não houvesse um histórico tenebroso até hoje influindo no contexto social? Essa é a pergunta que se destaca em meio a manifestações que consentem e humanizam o inaceitável, como se deu com o desfile carnavalesco vitorioso na Sapucaí neste 2023.

O que fere a dignidade humana, o que consagra ao opressor aura de rei ou salvador, será sempre prejudicial ao coletivo, em qualquer tempo, em todo lugar. E não há contemporizar com isso.
As cangaceiras viviam como prisioneiras de seus algozes, os próprios maridos, a quem eram entregues ainda garotas, a brincar com suas bonecas de pano, como Durvinha, Nenê e Dadá, estuprada aos 12 anos, cuja pavorosa história é contada em detalhes pela jornalista e pesquisadora Adriana Negreiros em seu livro Maria Bonita – sexo, violência e mulheres no cangaço (Editora Objetiva, 2018). Todas só podiam fazer o que “seus donos” permitiam, e havia ainda as nefastas “geras” (estupros coletivos).

Maria Gomes de Oliveira ou Maria de Déa, a sertaneja mais famosa do cangaço, encabeça uma enorme lista de mulheres do sertão, oprimidas, silenciadas, desrespeitadas, humilhadas, maltratadas, subjugadas, traídas. Vivendo um casamento infeliz, a jovem apaixonou-se por Lampião desde que começou a ouvir falar de suas façanhas como homem destemido. Acabou largando o marido e foi viver com ele no meio do cangaço, passando então a ser chamada de Maria do Capitão. Só depois de morta, ficou conhecida e ganhou a fama como Maria Bonita. Não há registros de que tenha sido estuprada, mas ela deve ser a única exceção: todas as demais integrantes do bando lampiônico, viviam oprimidas, maltratadas, subjugadas e eram estupradas constantemente: “Todas as cangaceiras eram obrigadas a entregar seus bebês ainda recém-nascidos. Geralmente, eles eram dados a fazendeiros, juízes ou padres”. Nem dessa vilania, Maria de Déa escapou, conforme conta Adriana Negreiros em seu livro já citado: também ela teve de entregar a única filha a um casal desconhecido.

Tudo isso me acorre a propósito do enredo da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, a campeã do desfile das escolas do grupo especial do Rio de Janeiro neste 2023. Com o tema “”O aperreio do cabra que o Excomungado tratou com má-querença e o Santíssimo não deu guarida”, a escola de Ramos bebeu na fonte de dois famosos cordéis: “A chegada de Lampião no inferno” e “O grande debate que teve Lampião com São Pedro”, ambos de José Pacheco. Sim, para o cinema, a teledramaturgia, a pintura e o cordel, o cangaço rende boas produções, quem há de negar? O trem descarrilha é quando a visão alcança o que está por trás dessa discursividade.

Porque quanto mais se enaltece Lampião, sua trajetória e o famigerado cangaço, mais se conta a história por um viés deturpado, mais se abafam as vozes dissonantes, mais se perpetua o silêncio “concedido” às mulheres, as maiores vítimas das barbaridades (embora não as únicas) consumadas pelo movimento que causou pânico e espalhou atrocidades no interior nordestino, baseado na cólera contra os adversários, na matança aos opositores e no estupro como prática corriqueira. Ademais, a propalada e distorcida versão que consagra a Lampião a alcunha de herói, fornece alimento para a perversa cultura do estupro, cujas estatísticas registram números cada vez mais amiúde.

Referendar Lampião como figura aguerrida, valente, benfeitor, defensor dos mais carentes e paladino do povo sertanejo, é desqualificar toda a luta do movimento feminista, ainda mais na atualidade em que as mulheres conquistam topos relevantes -, com muito suor, luta e batalhas diárias -, e seguem atinadas, aptas a prosseguir somando conquistas e abrindo sendas para atuarem onde e como quiserem. Portanto, a defesa consistente, persistente e empoderadora desse discurso de reverência a um homem cujo heroísmo significa opressão contra as mulheres e vilania de toda sorte contra os que dele discordassem, é fortíssimo incentivo para o sustentáculo da nefasta cultura do estupro, com a qual não podemos ser coniventes.

Com que sentido se reproduz, numa festa popular de alcance mundial como o carnaval carioca – no qual a alegria, a liberdade, a criatividade artística, a musicalidade, a artesania, a potência criativa do artista brasileiro e a transgressão são princípios básicos –, justamente o discurso de defesa de um movimento que mascara a violência de gênero e ratifica o desrespeito aos direitos humanos mais elementares?

Muito bem fez a comissão julgadora do Troféu Estandarte de Ouro do jornal O Globo ao premiar como melhor escola a Beija-Flor, que desfilou contando outras histórias da Independência do Brasil, felizmente já bastante divulgada como um movimento de múltiplos protagonismos.

A quem interessa reproduzir esse manancial de estupidez e mantê-lo ativo no imaginário popular, ou a que interesses atende uma concepção cultural que sublinha, glorifica e enaltece a figura de um sanguinário contumaz, nutrindo uma espécie de saudosismo de uma época na qual as mulheres viviam confinadas ao espaço doméstico?
Ainda não tenha sido essa a intenção dos criadores do enredo – por sinal, belíssimo e musicalmente inovador ao misturar xote e xaxado com o samba, mostrando o quanto é plural e rica a cultura nordestina -, cabe a nós, pesquisadoras feministas, alcançar além do brilho das fantasias e da beleza do desfile, para tentar desvelar a intenção submersa na mensagem do samba-enredo.

O carnaval é sim um dos momentos mais propícios para ratificar construções ultrapassadas, desconstruir padrões, questionar valores, provocar debates, estimular revisões da história e interpelar disposições políticas que favorecem o imenso arcabouço patriarcal e colonialista pouco caso faz da violência de gênero, mácula na composição da vida nacional. Faz-se necessário aclarar o legado torpe de truculência deixado pelo cangaço e contar, com as tintas necessárias e os devidos pingos nos is, a verdadeira história de Maria de Déa, Nenê, Idalina, Dadá e tantas outras vítimas do cangaço.

Como bem diz Caetano, “É preciso estar atento e forte”: não podemos nem temos direito de propugnar concordância com a cultura do estupro, e isso terá repercussão sempre que não silenciarmos ante vilanias e atrocidades machistas e racistas, de onde quer que venham. Daí porque esperamos este texto funcione como alerta na ponderação historiográfica, pois há desconexões lesivas com a verdade documentada. Pensar em como desfazer concepções arraigadas que tanto mal produziram e contribuir para a construção de conhecimento que traduza humanidade e respeito à coletividade. Repensar, recontar, repassar e legar discernimento à posteridade.


1. Ver matéria “Seu Carnaval é político?”. Disponível em https://gamarevista.uol.com.br/semana/qual-e-a-sua-fantasia/carnaval-e-politica/. Acesso em 27 fev 2023.

2. Ver matéria “No Brasil, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio no 1º semestre do ano”. Disponível em
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/12/feminicidio-fez-699-vitimas-no-brasil-no-primeiro-semestre-deste-ano.ghtml. Acesso em 27 fev 2023.

Aurora Miranda Leão é Jornalista, atriz e documentarista, é mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde faz doutorado pesquisando teledramaturgia, sertão e identidades de gênero. Bolsista CAPES, edita o #blogauroradecinema e é autora dos e-books Telenovela: a ficção popular do Brasi;, O cinema que mora na minha saudade; Na Televisão Na Palavra No Átimo No Chão; e Teledramaturgia: Meu pedacinho de chão e uma metodologia de análise.