Irka Barrios

Hoje, na Kuruma’tá, a gente tem um trecho selecionado do conto O verão de 85, da premiada escritora gaúcha Irka Barrios, que prepara três novos livros e organiza nova coletânea; nas suas obras a autora evidencia as temáticas do corpo e da sexualidade das mulheres, enxergando a arte como expressão e luta, em sintonia com os horrores dos tempos atuais.

Irka Barrios [ Foto:  Oblíquo Imagens ]

“Como latinoamericanas, compartilhamos da dor e da violência, heranças da colonização (ou tomada) do continente.  São as mulheres que sofrem as violências mais covardes, sabemos. No Brasil não é diferente. Apesar de nosso país se manter um pouco afastado de nossos vizinhos (por motivos geográficos, culturais e por questões de língua), observamos expressões interessantes do horror produzido por mulheres como Verena Cavalcante, Paula Febbe, Larissa Prado, Juliana Cunha, Sinara Foss, Juliane Vicente, Andréa Berriell e tantas outras. São textos que se comunicam com os temas abordados pelas hermanas dos países vizinhos.”
Irka Barrios

O verão de 85 (trecho)

O caso era que havia, dentro do terreno de um próspero fazendeiro, um açude onde proliferaram peixes carnívoros. Ninguém sabia a origem e nenhum biólogo se interessou a estudar o fenômeno. Ou se interessou e não houve recurso da universidade. Naqueles anos não existiam muitas universidades, as informações eram precárias, os boatos corriam, assumindo um tom de verdade difícil de contestar. Uns diziam que eram criaturas escuras, de deslizantes corpos alongados e guelras pegajosas que se abriam ao largo, enormes, feito asas. Outros diziam que os peixes possuíam duas ou três camadas de dentes afiadíssimos e maxilares que se fechavam num encaixe perfeito, para nunca mais abrir. Alguns defendiam a teoria que os bichos nada mais eram que descendentes de um réptil pré-histórico que sobreviveu aos milênios evolutivos e encontrou as condições necessárias naquela água lodosa. E havia, ainda, os mais entusiastas, bairristas ao extremo, que insistiam que os bichos eram originários de uma cruza de peixe com cobra, uma espécie ainda não catalogada, exclusiva do açude do seu Darlan. Mas todos, absolutamente todos concordavam quando o assunto era o ataque das criaturas. Um desavisado que resolvesse pescar ou molhar os pés ali jamais sobrevivia. Os animais destroçavam o corpo em segundos. A coisa era tão feia que os parentes optavam por realizar os enterros com caixão lacrado.

Brincávamos naquelas terras, mas nunca nos aproximávamos do açude. Algumas vezes a curiosidade nos tomava de assalto e jogávamos pedras, a partir de uma distância bem calculada. Espiávamos de longe a movimentação da superfície, cada um com seu palpite sobre a forma e o tamanho das criaturas. Alimentavam-se do quê? Dos bois e cavalos que paravam para beber água? De pássaros, lagartos? Ou tinham reservas no corpo, como as cobras, que se alimentam e demoram meses digerindo a presa?

Era dezembro, início do verão de 85, quando nossa curiosidade tomou as proporções mais elevadas. Alguém contou para outro alguém que os peixes haviam destroçado uma nova vítima e que desta vez não havia restado um pedaço sequer. Devoraram tudo. Não poderíamos perder mais tempo, precisávamos ver, investigar, descobrir. Organizamos um grupo, juntamos pacotes de salgadinhos, duas garrafas térmicas com limonada, seis sanduíches de presunto e queijo, e montamos guarda nas proximidades do açude. Roubamos uma fita e medimos dez metros de distância a partir da margem. Sabe-se lá, talvez por conta de algum relato mais preciso, achávamos que os peixes conseguiam saltar essa distância durante o dia. Combinamos que a cada duas horas um novo olheiro deveria se apresentar no posto de observação. Mas o fascínio era tanto que ninguém queria arredar o pé da guarita improvisada. Só aceitávamos desmontar acampamento e ir para casa quando anoitecia. Vai que os monstros criassem patas e saíssem para se alimentar durante a noite?

Após quinze dias de observações frustradas, peles ardidas e rostos descascados pela onipresença do sol de dezembro, uma tempestade mudou o rumo de nossos trabalhos. Perdemos um dia inteiro de investigação e quando tentamos retornar ao local, o terreno todo havia se modificado. Um enorme pântano se formara, impedindo-nos de caminhar na direção do açude. Resignados, subíamos no portão da casa do seu Darlan e espiávamos a vasta extensão de terras alagadas.


A obra mais recente de Irka é “Júpiter, Marte, Saturno” (104 pág.), lançada em 2022 pela editora Uboro Lopes, que apresenta 14 narrativas que transitam no contexto “do fantástico, do invertido, do maravilhoso, do sobrenatural”, como define a escritora mineira Adriane Garcia, que assina a orelha.

“Foi a minha terceira escrita de romance, e a que resultou num livro com condições de ser publicado”, revela. “Já os contos são de diversas épocas, eu tentei unir os que melhor conversavam. O romance, em minha criação, veio primeiro, o conto depois. Mas o conto, a forma com que ele se manifesta, é mais natural em mim.” — Irka Barrios.


Irka Barrios (@irkabarrios) é Doutoranda em Escrita Criativa. Venceu os Prêmios Brasil em Prosa (Amazon/Jornal O Globo, 2015) e Odisseia da Literatura Fantástica (2022). Seu romance “Lauren” foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020. Escreve para a Revista Ventanas, ministra Oficinas na GOG, atua no Coletivo Mulherio das Letras e é mediadora do Clube de Leitura Escuro Medo. Organizou as coletâneas “O Novo Horror”, “Vigílias”, “Tudo soma zero” e “In Corpa”.