Independência Poética: Samara Belchior

Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA

Poeta de hoje: Samara Belchior

Samara Belchior (1987) mora na Zona Leste de São Paulo, onde leciona na rede municipal de ensino. Foi aluna do CLIPE poesia (2021) e do Poesia Expandida (2022) na Casa das Rosas. Cursou licenciatura em história, licenciatura e bacharelado em filosofia. É autora de “bruxismo e outras automutilações” (Editora Urutau, 2022). Tem textos publicados em algumas revistas digitais e impressas. Se interessa por bruxaria, anatomia e coisas invisíveis. Tem dois gatos.

O que te inspirou a começar a escrever?

Não tenho um momento específico que marque o início da minha escrita. Desde que aprendi a escrever as primeiras palavras, fez muito sentido me relacionar com elas para expressar minha existência no mundo. Antes mesmo de aprender a escrever, as palavras faziam muito sentido sendo cantadas, a grafia das letras também.

O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?

Depende. Se estou envolvida com alguma pesquisa acadêmica, tento respeitar o movimento atual, do tipo de escrita atual com o qual estou lidando. É que percebo que às vezes não estou escrevendo poesia por estar entregue a outros tipos de processo de escrita. Para lidar com o bloqueio, em geral, ler poesia e prosa, ou seja, buscar inspiração, é uma saída. A troca com amigas escritoras próximas, o diálogo sobre o bloqueio é uma outra saída. Por fim, participar de oficinas, mini cursos ou recorrer a exercícios anteriores já utilizados, são possíveis outras saídas.

Seu maior sonho como escritor(a)?

Poder viver de arte.

Assunto preferido de escrever?

Há alguns temas comuns em minha escrita: corpo, processos fisiológicos e natureza. Não sei se tenho um assunto de preferência, de fato. Como minha formação percorreu história e filosofia, tenho a tendência de me deixar espantar pela vida, em geral.

Um elogio para sua própria escrita?

É estranha.

Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?

Sim: “bruxismo e outras automutilações” pela Editora Urutau. Em breve vai rolar o lançamento de uma plaquete, pela Editora Primata, intitulada “ Para não ser de plástico quero ser bruxa”.

Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?

Processos fisiológicos corpóreos me impelem a escrever. Escrever é catártico para mim, me orienta na caótica existência no mundo, portanto meu corpo é o primeiro lugar em que a escrita aparece, antes de se transformar em palavra. Não é que seja só sobre a minha relação com meu corpo, mas com a forma como o entorno me chega, me afeta. Posso sentir um espasmo ao observar uma situação social na rua, uma fisgada na barriga numa conversa, um arrepio na nuca com uma música. O poema é um pré espaço vazio para elaborar o corpo e sua relação com o mundo. Escrevo a partir das angústias de ser um corpo no mundo.

Qual dos seus poemas mais te define?

Essa é uma pergunta muito complexa que não sei se vou responder corretamente mas, devo dizer, o poema que mais me define não é bem o que mais gosto e também: é circunstancial, talvez ele deixe de me definir.

autotrópode

as ecdises acontecem em silêncio
bicho com cobertura ao carboidrato não chora choro desidrata

(já se dizia, ser de açúcar faz precisar de capa)

de muda em muda se descobre conflito no próprio leito doendo no sono
esconde o que não sabe articular

Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?

A parte mais fácil é a catarse, especialmente quando chega um poema, um verso, uma palavra perseguidora e companheira, fica contornando os órgãos, borrifando sentido na vida. A parte mais difícil é deter-se racionalmente, com base em técnicas e recursos, na edição, na lapidação, mas essa parte também é boa, gera uma sensação de produção artesanal. A parte mais difícil ainda é entregar o escrito pro mundo. A parte mais difícil das partes mais difíceis é a ansiedade da recepção: como chegou no outro? E talvez não dê pra saber.

Qual sua obra favorita de outro autor(a)?

Não tem uma só e, surpreendente ou não, a prosa influencia bastante minha criação poética, assim como a filosofia e alguma literatura sobre história da medicina, biologia e morte. Na prosa Clarice Lispector me pega de jeito com “O livro dos prazeres”. Simone de Beauvoir me acompanha com sua filosofia existencialista de “O segundo sexo”. Adoro a produção de Caitlin Doughty sobre as práticas da indústria funerária. Na poesia é muito difícil estabelecer uma obra favorita, já que nos últimos dois anos me deparei muito de perto com autoras nacionais contemporâneas tão maravilhosas no CLIPE poesia da Casa das Rosas em São Paulo. Stella do Patrocínio e Alejandra Pizarnik são muito preciosas na poesia para mim.


Um livro de Samara Belchior

Nome da obra?

bruxismo e outras automutilações

Quando e em qual editora foi publicada?

2022. Editora Urutau.

Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?

Corpo, processos fisiológicos, inconsciente.

As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?

São três sessões no livro: “matéria macia feita de pele deitada”, “ampliar os cortes para saber de que tecido é feito o eu” e “estruturas porosas”. Dividi nessas três sessões poemas que falam: primeiro sobre as angústias do corpo individual, segundo sobre esse corpo que dói em relação ao mundo e à vida em sociedade e terceiro aos respiros possíveis numa existência que carece de criação de sentido constantemente, apesar da consciência da finitude do corpo e do eu.

O que te incentivou a escrever esse livro?

Desde criança sonhei com um livro de poemas publicado. Ainda tenho comigo meu primeiro caderno de poemas, de antes dos dez anos de idade. Em 2021 e 2022 participei do CLIPE poesia. Trata-se do Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas, em SP. Ali pude dividir minha escrita com outras poetas e outros poetas contemporâneos e estar sob a supervisão de professoras e professores que me incentivaram a desenvolver o projeto com o qual ingressei no curso.

É possível destacar uma poesia que mais se assemelha a seu cotidiano?

Se a gente entender cotidiano como passagem do tempo, acho que há um poema sim, rs.

amonite

olhar os dentes
no espelho perceber as coisas envelhecendo dentro
são ossos comidos na maresia tempo e maresia comendo o corpo alimento às bolhas
então as rótulas desgastadas na idade das mulheres de balzac sentem ondas soprarem ossos ao encontro do areal
justa e precisa a maresia engole, lento e preciso o movimento ao termo.

A sequência dos poemas conta alguma história?

Não.

Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?

Acredito que não ocorra de forma explícita, mas o posicionamento político é perceptível sim.

Qual a poesia mais marcante desse livro?

Não sei se posso responder isso, acho que depende muito mais da recepção do que da autora. Alguns se sentirão mais marcados por um ou outro poema, alguns não se sentirão marcados por nenhum. Depende da experiência das leitoras e leitores com os poemas.