Existirmos

Crônica de Toinho Castro


Para Caetano Veloso

De certa feita, estavam as amizades reunidas em um bar, à título de beber à vida e debater inutilidades. Passava das 10 da noite, a tal de 22h, quando alguém puxou o assunto ‘Deus”. E aí é lógico. Se Deus existe ou não existe. E isso é uma tremenda chateação em que as pessoas envolvidas, eventualmente, acabam se chateando. Porque tem sempre quem quer provar que Deus não existe e tem sempre alguém que acredita em Deus e compra o embate, parcelado. E argumentos banais voam de um lado para o outro da mesa, e nem sabemos se Deus tá assistindo de algum lugar. E isso é outra questão… se Deus existe, onde está Deus. Onde ele mora?! De onde ele dá os comandos e as linhas de código desse tumulto que é a existência humana?

Alguém mandou pra alguém em meio à balbúrdia regada a chopes que não paravam de chegar: Você já viu Deus?! Ao que o outro respondeu: Nunca vi! Mas você nunca viu a minha mãe e ela existe!

Normalmente qualquer argumento com mãe faz as pessoas mudarem de assunto. Menos se o assunto for Deus. O debate, se é que se pode dar a isso o nome de debate, prosseguia cada vez mais obscuro e emaranhado. Teve uma hora que não resisti: Minha gente… eu não sei nem se vocês existem. Ademais, pra discutir se Deus existe ou não, se faz necessária uma discussão prévia. Mas o que diabos é a existência?! Sem responder a essa demanda, não podemos discutir o que existe ou não existe.

Fez-se nervosismo na assembleia bêbada. De repente um louco pôs em cheque o direito de geral discutir se Deus existia ou não. Porque, afinal, ninguém sabia o que é a existência. Ou melhor, o que é existir. Era como ser de uma profissão que ninguém sabe onde se exerce, nem as habilidades requeridas ou mesmo o resultado do empenho. E eis que ali estávamos, sem saber sequer o que éramos, atrás de definir Deus. Perda de tempo que chama, né?! Talvez não.

Sou, pois, a favor dos altos debates. Sobretudo na mesa do bar. Mas também gosto de ser do contra. Gosto de discordar, como quem abana as brasas para avivar o fogo.

O que é existir, minha gente? — Perguntei. Eu existo? Uma vassoura existe? Deus existe como uma vassoura existe? Como uma lâmpada existe? Como uma cadeira num quarto fechado e sem testemunhas existe? Espere! Uma cadeira trancada num quarto vazio, onde ninguém pode vê-la, existe?! Quando eu era criança tive um amigo invisível. Que fique claro… invisível para os outros. Eu o via muito bem. Quando minha mãe perguntava onde ele estava eu dizia: Entrou no espelho.

Nada é garantia de que algo exista enquanto não sabemos responder a essa pergunta básica: Existirmos, a que será que se destina? ((Verso que abre a canção Cajuína, de Caetano Veloso, no álbum Cinema transcendental, de 1979))

De repente eram tantas dúvidas, tanta inconsistência, tanto devaneio, que a mesa aquietou-se. Então, um dos que estavam mais inflamados, deu um gole cinematográfico no chope, desceu a tulipa ruidosamente sobre a mesa e proclamou: Bem, pelo menos uma coisa é certa. Todo mundo um dia morre.

— Bem, eu não tenho tanta certeza disso… — Fala que provocou uma irritação geral.

Mas que diabos é “todo mundo”? Que entidade mágica é essa? Como é que a gente sabe que TODO MUNDO morre?! Eu sei, eu sei… tem aí um tempo médio de vida para o ser humano. Mas esse tempo varia, de acordo com as condições, com o país, com o grau de miséria e injustiça a que uma pessoa pode ser submetida. Depende do acaso, dos deslizamentos nos morros cariocas, do tifo, das sequelas da escravidão e também do ouro acumulado. Do sódio acumulado no organismo, dos embutidos. Mas e se no meio dessa confusão de gentes e estatísticas, alguém simplesmente não morreu?

Acho, inclusive, que li em Jorge Luis Borges que a morte é uma realidade estatística. Basta uma pessoa, em toda história humana, não ter morrido pra que a gente não possa mais dizer que todo mundo morre. Mas ninguém viu nem soube desse imortal, dirão os céticos à mesa. Pois bem, se fosse eu esse imortal, bem que ficaria caladinho, na encolha. Tal qual um Highlander, com um esquema muito bom pra enganar as pessoas e a receita federal. Tem aquele outro filme, O homem da terra, em que um professor revela às suas amizades, perplexas, que estava vivo há cerca de 14 mil anos. O filme é uma discussão sobre essa possibilidade. Sim, uma possibilidade. Dentre tantas.

Com a morte cessa a existência, dizem. Ou passa-se a existir numa outra condição. Talvez existir seja, proclamei à mesa exausta, a única condição.

Brindamos à existência. Brindamos a Deus, afinal. Ou adeus, como poetizou Miró. Não o pintor catalão, mas o pernambucano da Muribeca. Existindo ou não, seja lá o que for a existência, o Deus bíblico ou íntimo, feroz ou terno, homem de barbas brancas ou mulher radiosa, nos proporcionou uma conversa acalorada que avançou pela madrugada. Não fosse no Lamas, estaríamos já pelas ruas, inquirindo as árvores sobre a existência divina, ou mesmo a nossa. Sequer sabemos se as árvores sabem que existimos.

Mas a hora de cerrar as portas uma hora chega, mesmo pro Lamas. E o debate que se seguiu, ainda mais acalorado, foi sobre a divisão da conta. Valha-me Deus! Já do lado de fora, às despedidas, vimos as portas do Lamas descerem até o chão, e nos perguntamos se tudo o que estava ali dentro, que até uns minutos atrás compartilhávamos, ainda existia. Malditos bêbados. Já pra casa!

Enquanto nos afastávamos, cada um na direção do seu destino, como se algo tivesse rompido bruscamente a força gravitacional que nos matinha unidos, um de nós gritou, como quem quer ter a última palavra: Ninguém nunca viu um átomo!

A declaração foi recebida com uma sonora vaia e de alguma janela alguém fechou a noite com chave de ouro: Cala a boca, palhaço!

Quem quer que fosse, certamente existia. E deixou isso muito claro.

Caetano Veloso, 1972 – Imagem do Fundo Correio da Manhã (Arquivo Nacional)