Independência Poética: Juciane Reis

Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA

Poeta de hoje: Juciane Reis

Profa. Substituta do Departamento de Educação (UEFS). Doutoranda em Literatura e Cultura (UFBA). Mestra em Estudos Literários (UEFS). Licenciada em Letras com Francês (UEFS). É autora de prosa e poesia. No momento, parte de seus estudos se concentra em investigar a mitopoética dos orixás utilizando, principalmente, Exu como fundamento epistemológico. É a terceira filha da família Reis-Santana. É autora da narrativa curta “(Amor)talhamento”, de viés afrofuturista, pela Editora Kitembo. Publicou “Umbilicus”, coletânea de poemas, pela Editora Segundo Selo, na coleção DasPretas. Foi finalista do 6º Prêmio Kindle de Literatura com “Xirê das Águas”. Este é o seu romance de estreia. Concebe a escritura como ofício invocação ancestral e sagrada.

O que te inspirou a começar a escrever?

Ter sido apresentada a leitura desde muito cedo, além de ter nascido cercada por palavras. Na minha família, apesar da ordem excessiva, da quantidade de regras, limites e normas, deixava-se espaço, mesmo que menor, para o corpo que artístico e impregnado de corporeidade e vida, cantava um samba, tirava um choro no cavaquinho e dançava valsa pela sala, rodopiante. Ter essa existência tão paradoxal, oscilante e intensa, própria do viver cosmoperceptivamente, levou-me ainda em tenra idade a querer refundar mundos com o poder da palavra-movimento de Exu.

O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?

Busco refúgio na criação. Somente lá, eu encontro vias para o produzir fértil e abundante. Tudo o que utilize os sentidos, que me provoque e me tensione. As muitas artes que produzimos. Os encontros, desencontros e reencontros. Tudo o que eu acredite ser matéria de poesia, consegue me destravar e desbloquear. E eu me torno mais uma vez água imparável.

Seu maior sonho como escritor(a)?

Acredito que trocar com aqueles que, como eu respondi o chamado para a escrita, respondem o convite para a leitura. No momento em que habitei a poesia, que ela circulou feito cinzas e retornou a mim como fênix, eu pude tomar posse de meus territórios, do meu corpo em semeadura, o meu ser em estilhaço e (re)construção. Sempre que escrevo eu me (re)crio mais uma vez, tomo todas as formas que aparecem nos meus versos, contos e romances. Eu me sinto inesgotável. Fonte que não cessa. É uma forma de também ser raiz e me aterrar.

Assunto preferido de escrever?

Tudo pode e deve ser matéria da escrita. Mas concentro as minhas obras nos temas que me atravessam, tocam e (com)movem. Eu busco o que nos aponta o aforismo de Exu, ser a pedra que foi atirada hoje e matou um pássaro ontem e amanhã ainda estará em trajetória. Eu digo que o pássaro acertado incessante, é a escrita, o texto-tecido de nossa matéria-vida.

Um elogio para sua própria escrita?

Fluídica, intuitiva e sensível.

Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?

Sim. A narrativa curta afrofuturística, intitulada (Amor)talhamento, pela Editora Kitembo; Umbilicus, meu livro de poemas, pela Segundo Selo, Selo DasPretas; e o meu romance de estreia finalista do Prêmio Kindle 2021, Xirê das Águas, em Pré-venda pela Editora Patuá.

Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?

Tudo o que me instigue e encruzilhe, faça-me habitar, ser e ter morada. Tudo o que me coloque na encruzilhada da vida, em face de caminhos, esquinas e sendas.

Qual dos seus poemas mais te define?

Aqueles com os quais tento apre(e)nder o escrever. Dois exemplos são Ciclo e Troca-Pele. É a busca por si, por um espelho que reflita a nossa face, a nossa multiplicidade, a história que pouco se revela, mesmo a nós, e onde sejamos inacabáveis. Obras em cíclica rebentação e arrebatamento.

Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?

Para mim, a escrita é o meu refúgio, o meu lugar seguro. Ainda que tão íntima, que me desnude, deixe-me indefesa, ela consegue ser uma concha, a fabricar os meus risos e lágrimas perolados. Ela me oferece riquezas, corais de tantas cores e formas e texturas. Ela me torna espuma, tsunami ou redemoinho.

Qual sua obra favorita de outro autor(a)?

Eu absolutamente amo todas as obras de Conceição Evaristo. Obras de autoras como Carolina Maria de Jesus, Toni Morrison, Maria Firmina dos Reis, Miriam Alves e Octavia Butler também estão entre as que alicerçam a minha escrita e as quais sempre releio, em busca de novos aprendizados e mergulhos. Um caminho muito próspero já foi delineado e apontado pelas mais velhas.

Um livro de Juciane Reis

Nome da obra?

Umbilicus.

Quando e em qual editora foi publicada?

Quando e em qual editora foi publicada?

Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?

Sim. Os cursos e fluxos de um rio. Sou filha das águas e os poemas se dividem em sete pontos-forças das corredeiras de um rio (Pàdé, Caminhos, Matripotentes, Fluviais, Meandros, Afluentes, e Desemocaduras).

As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?

Eu buscava a origem da palavra enterrada no umbigo do rio. Buscava a orixá Oxum, as águas que primeiro lavam o próprio corpo e joias, para se purificar e fortalecer, a fim de então banhar os/as filhos/as. Encontrei-me lá, ainda, com as orixás Nanã e Iemanjá, águas do mangue e do rio, que desaguam no mar que sou. As águas são incontornáveis em minha natureza e na minha vida. As ìyáàgbá são soberanas em mim e na minha escrita. Uma escritura que se banha no feminino da criação. Seu mote, cerne e nascente.

O que te incentivou a escrever esse livro?

O meu umbigo. A cicatriz de minhas origens. A impressão que indica o meu nascimento nos/dos braços de Oxum. Ela foi a Ìyáàgbá que primeiro me embalou. Eu sou parte do seu corpo amniótico. Da sua gema dourada. Do seu acalanto, eu soube que a palavra não morreria diante do luto, não pereceria diante da dor ou ficaria inerte em face da tormenta marítima que eu carregava. Ìyá Oxum, que é pura fertilidade e fartura, semeou em mim a abundância narrativa.

É possível destacar uma poesia que mais se assemelha a seu cotidiano?

Sim, na verdade, uma passagem de um dos meus poemas, intitulado Mar de Sal: “o umbigo é o mesmo”. Fala de nossas trocas, intercâmbios e heranças. De como vivemos em diáspora e somos transatlânticos. Das ancestralidades que carregamos e se (re)conectam, alimentam e correspondem. Dos cordões umbilicais que nos ligam à memória viva de nossa origem e de nossos trânsitos muitos ainda em processo.

A sequência dos poemas conta alguma história?

A narrativa da criação. Do nascimento ao passamento. Os fluxos, desvios, confluências, quedas, levantes e espraiamento de nossas águas nos cursos da vida.

Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?

Sim. As vozes que revelam as faces-fases de uma mulher negra que costura a palavra com fios de sangue no tecido sacro-ancestral

Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra?

As vozes que se apresentam em Umbilicus são marés, rios, fios d´água, tanto em levante, quanto murmurantes ou tempestuosas. Muitas das vezes, acredita-se que seja água rasa, mas ali se criou profundezas abissais, e é uma água funda, que se deve pedir agô para entrar e a benção para sair, pois é capaz de promover travessias e deságues dos mais diversos.

Qual a poesia mais marcante desse livro?

Existem muitos poemas que considero importantes, como Exu Inventa o seu Tempo, (Des)parição, Mãe-Ancestre, Mar de Sal, Marianas, e Epistemicídio. Todos falam do poder da palavra, do movimento e da voz, das narrativas que viabilizamos e damos visibilidade, a memória que carregamos em nossa impressão psíquica, de um passado que ainda se mostra futuro, da ligação com a natureza, dado o nosso corpo sagrado, receptáculo e propagador de vida, como ainda estamos enredados em um tempo outro, de uma memória que pede dengo, zelo e acalento, que sangra e não se cura totalmente, que retorna, assombra e permanece. A mesma que, muitas das vezes, se quer aniquilar ou esquecer. E, apesar de tudo, desabrocha, é puro florescer.