Nós vivemos essas coisas (ou O Recife partido em 4 bandas)

Texto de Aderaldo Luciano


Por todo o séc. XIX, a cidade do Recife foi se constituindo no grande portal da cultura brasileira. A literatura e a filosofia deitaram-se em suas ruas a partir de sua Faculdade de Direito. Nos becos e vielas estavam se fortalecendo os movimentos culturais do povo: um esteio de maracatu, outro de frevo surgindo devagar, o mela-mela e tudo que confluiria para uma produção artística imponente na primeira metade do séc. XX. Já a partir da década de 60 desse mesmo século, o XX, forjaram-se alguns movimentos musicais determinantes.

A Paraíba recebia esses manifestos sonoros e os deglutia pensando também em fortalecer sua própria vida. De alguma forma chegaram até nós, habitantes das soleiras interioranas, os discos produzidos no cenário sócio-temporal recifense. A formação de grupos musicais assentados na tradição, aplicando elementos da modernidade em seus arranjos, subvertendo esteticamente as melodias e harmonias, escrevendo frases tangentes, mas nunca centrífugas, esses elementos nos ofertaram cachoeiras de prazeres acústicos.

Foi assim que Quinteto Violado nos ofereceu um disco temático de intervenção social e política tão forte que nos encantou em todos os aspectos. Missa do Vaqueiro, cumprindo a tradição litúrgica da Eucaristia católico-sertaneja, pautada pela necessidade cabocla, denunciava todos os desmantelos políticos infectantes do solo e da alma do Jesus dos Sertões. Preparado a partir da missa real, tomou nosso imaginário e fortaleceu-nos na tomada de consciência quanto à civilização do couro e sua importância.

Na mesma pisada a Banda de Pau e Corda, com o disco Frevo, nos oferecia a rua primordial recifense, aquela adornada com o frevo vindo de Olinda amolando as Pás, afinando as Vassouras, gritando que o Recife acordou e observando que, nos cabelos de Rosinha (o próprio Recife) a rosa nunca amarelou. Os arranjos deixaram de lado o furor dos clarins, trombones, trompetes e clarinetas e abraçaram os bordões, as primas, as sextas e as nonas dos instrumentos de bojo de madeira. Foi eletrizante, incluindo uma formação sonora diferente, como um regional.

Se o Quinteto trouxera o gado e seus tangedores e a Pau e Corda, a rua e seus habitués, o Quinteto Armorial vestiria sua armadura e nos apresentaria, a seguir, o Imaginário Armorial, codificado por um Ariano mais radical tangendo quase para o sectário. A proposta, conduzida com a observação rigorosa dos ditames do mestre e mentor, consumara-se no disco inviolável Do Romance ao Galope Nordestino. Com aquele som peninsular, dialogando com o mourisco, o andaluz e a alma sertaneja, o pacote musical nos trazia uma canção chamada Toré, uma arquitetura africana e indígena, com um pife intrometendo-se todo o tempo entre as violas, os violinos e a percussão.

Mas, talvez vocês convirão comigo que, em todo o percurso cultural de uma cidade, as inovações, as ousadias, requerem sempre a mão viva do talento, a técnica: o engenho e a arte. Entre eles, num repente sagrado e necessário, surgiu um som tão diferente e, ao mesmo tempo tão aparentado, que nos causou espanto e arrepio: era o voo da Ave Sangria dizendo logo na abertura que, lá fora, “é esse cansaço!”. A capa com uma figura mítica mulher e ave, meio a meio, num cenário também sertanejo, vestindo uma túnica e vendo-se por ela o corte vaginal. Eram balada e rock e letras psicodélicas. Bem diferente dos três anteriores, a Ave Sangria nos sangrava com outra proposta. O decorrer da década de 70 consolidaria esse estilo em outros artistas. Nós vivemos essas coisas. E sobrevivemos. Ainda!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *