Poemas do Tesserato | Calí Boreaz Revista Kuruma'tá, 14 de julho de 202010 de março de 2021 Tesserato é o nome do novo livro da poeta Calí Boreaz, cujo trabalho a gente aqui na Kuruma’tá tem acompanhado com atenção e encantamento. Sempre uma alegria quando ela manda poemas pra gente, pelo que há de surpresa, de delicada qualidade em cada verso. Sobre o livro, deixo aqui a palavra da poeta: tesseratoé um súbito lugar de fusão. em toda a fusão existirá um momento de confusão? numa sucessão de interseções de espaços e tempos em movimento — como se estivessem girando num grande hipercubo —, o sujeito poético se desloca ao longo da imobilidade. toda a imobilidade conterá uma suspensão? nesse amplificar-se, entre estar e já-não-estar, entre a inexistência de um pouso e a espera por si mesmo já nesse pouso, é traçada uma inexplorada dimensão. os poemas — em verso e prosa — de tesserato são tentativas de atingir o tanto de um instante. mais do que contar o instante, porém, confessam seu intento de silenciar o que está em volta dele, para que ele, apenas, aconteça. por entre uma multidão de linhas retas se caminha em busca da curva — mesmo que a intuição aponte que se contorna um buraco onde, provavelmente, já se caiu. por entre espantos, de um olhar e uma escuta que se agarram à cidade — suas águas, janelas, ralos, gruas —, eis que, em algum lugar de sinergia, a própria existência parece querer refletir-se. Poemas de Calí Boreaz mamihlapinatapai em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas. mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus… como posso eu dizer algo agora daqui de onde estou? __ ainda sou muito nova para escrever este poemapercebo que a melancolia é um excesso— de espaço e de tempopercebo que sou dos cavalos que precisamnão do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossosmas do próprio desaparecimento— para iniciar o trotepercebo e procuro seguir o conselho de ferlinghettiouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terradepois, desaparafusar as portas mas nãojogar fora os parafusosque eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusosnão destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em menteestou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusospendurado ao pescoço (e é pesado)mais uma vez, mais uma vezo dedo suspenso a um milímetro do botão da bombae não estou conseguindo interpretar os sinaissou ainda muito nova para escrever este poemamas já sei que o canto dos pássaros é de desesperotambém já percebi que saber não chegar é tãobonito quanto: chegarde boniteza estamos bem, lá isso estamosthe boniteza is the new felicidadea cidade anda medindo meus passosde lupas nas pontas dos tentáculosde cima de baixo dos lados e na diagonalsobretudo na diagonal: a luz mesmo a rasparmas sem aderir à minha peleque é realque é realter medo é ainda desconhecercorrijo: ter medo é ainda precisar conhecereu não estou conseguindo interpretar os sinaiscorrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do alémé só isto: enquanto uso palavras, as palavrasusam-meenquanto pergunto à montanha, a montanhapergunta-meenquanto continuo aqui, o aquicontinua-meah, ouve bem isto:ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feiasmas hoje eu estou cansadaentão, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamentenão nos iludamos, meus vizinhos:acabaremos sempre um pouco antes do fimserei sempre muito nova para escrever este poema Compre um exemplar autografado de Tesserato A calí boreazLeituraLivroPoesiaPortugal