Texto de Toinho Castro
Em 16 de agosto de 1929 nascia o poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos, em São Paulo. Na mesma São Paulo ele veio a falecer, poucos dias depois do seu aniversário, em 19 de agosto de 2003, aos 73 anos.
Nas décadas de 1980 e 1990, lá no Recife, vivi de ler Haroldo de Campos, e seu irmão, Augusto. Contaram-me sobre o fim do verso, que eu tanto amava, sobre a temperatura informacional do texto, uma frase da Teoria da Poesia Concreta, que eu achava ser, justamente, um verso lindo. Eu tinha esse livro, da editora Brasiliense, que eu lia tentando compreender aquele novo mundo que se abria pra mim, tão longe de São Paulo, em tantos sentidos, que eu estava. Tão longe e tão perto, como se diz. Sentia-me no bairro de Perdizes ao folhear as páginas dos irmãos Campos e seu fiel parceiro, Décio Pignatari.
Eu não compreendia tudo e nem concordava com tudo. Eu não queria a morte do verso (nem eles!), mas aquilo me colocava em movimento. Aquelas páginas já haviam sido lidas, relidas, discutidas, repensadas e eu, sem dúvida, chegava bem atrasado ao debate. Mas o debate era fresco e urgente na minha cabeça. Essa é a importância dos livros… enquanto eu os lia vivia sua história e enfrentava os dilemas, contradições, com minhas ideias e discutia com meus amigos, atrasados como eu naquela festa. Para mim a poesia concreta sempre será nova e desafiante. Sempre que a acesso me ponho a pensar. Devo muito disso a Haroldo de Campos.
Pude encontrá-lo certa vez, na minha primeira visita ao Rio de Janeiro, junho de 1993 (Conto essa história aqui). Era o lançamento de Bereshith: a cena da origem, sua tradução para um trecho do Livro do Gênesis e um trecho do Livro de Jó. Aventurei-me de ônibus na noite da cidade, sem conhece-lá, até a Gávea, na livraria Marcabru. Levei comigo o meu exemplar de Qohelet/O-Que-Sabe, sua tradução para o livro de Eclesiástes que eu havia comprado há pouco na Dazibao, livraria que deixou histórias e saudades. Para Antonio, este Poema Sapiencial bíblico, que nos diz tanto ainda hoje. Foi isso que ele me escreveu na folha de rosto do livro. Depois pude escutá-lo, emocionado, recitar os versos (sim, o verso não havia morrido) do Livro de Jó, de quando Deus responde a Jó.
Com Haroldo de Campos eu li Maiakóvski e a poesia russa, li Ezra Pound, Konstantinos Kaváfis, Sousândrade, Joyce… É uma contribuição inestimável de uma pessoa para outra. E isso é somente a ponta do iceberg, porque todas essas leituras se ramificam em mil outras leituras, numa coisa que puxa outra; pois a única vida possível é puxando o fio da meada.
Tenho alguns dos seus livros, outros se perderam no caminho, mas mãos dos amigos que pegaram emprestados e nunca devolveram. Espero que tenham lhes feito o bem que me fizeram e aberto as mesmas e também outras portas. Tive um exemplar de A educação dos cinco sentidos, editado em 1985, creio. É um livro pelo qual tenho especial apreço e ao qual sempre retorno. Foi um dos que sumiram no sorvedouro de livros que são as amizades. Comprei, já no Rio de Janeiro, uma outra edição, da Iluminuras, que vem com um CD com poemas, em que recupero aquela voz que escutei há 27 anos numa pequena e querida livraria na Gávea. No livro tem o poema Ode explícita em defesa da poesia no dia de São Lukács, em que diz da poesia:
porque não tens mensagem
e teu conteúdo é tua forma
e porque és feita de palavras
e não sabes contar nenhuma estória
e por isso és poesia
como cage dizia
Sempre que vou a São Paulo penso em Haroldo de Campos, na aventura luminosa da poesia concreta. É quase sempre como se estivesse em meio aos seus poemas, ao seu Galáxias, texto infinito que li no Xadrez de Estrelas e do qual Caetano Veloso inventou sua Circuladô de fulô, emanando as forças do povo, o inventa línguas. Haroldo era essa confluência de caminhos, encruzilhada que distribuía jornadas. Tenho dele a minha jornada que nunca acaba, infinita como Galáxias, a emendar uma narrativa na outra. Compondo leituras e histórias e buscando o sempre o novo, não somente pelo novo simplesmente, mas pela tradição que ele carrega.
Obrigado, Haroldo.