História de dois livros

Texto de Toinho Castro


Partir e deixar para trás… é o que dizem. Discos, livros, amigos, família. Nunca achei que fosse assim. Nunca me senti deixando o que, ou quem quer que fosse, para trás. As coisas, as pessoas, estavam simplesmente os seus lugares, em permanente estado de transformação e potência. Não havia uma espécie de espaço de animação suspensa onde tudo isso flutuasse. Estava lhes acontecendo, como a mim mesmo, a vida.


À memória de Auta de Souza e Haroldo de Campos

Eu moro no Rio de Janeiro desde 1997, mas foi em 1993 que visitei a cidade pela primeira vez. Parecia um menino do interior caminhando no cenário de uma novela. Havia um deslumbramento ingênuo, certamente. E uma paixão à primeira vista por uma cidade de acabou por me acolher em definitivo poucos anos depois. As sensações e experiências dessa primeira visita foram muitas, tantas. O assombro das rochas do Pão de Açúcar, do Dois Irmão, do maciço da Tijuca se erguendo no meio da cidade, como se ela já estivesse ali e um grade acidente geológico a tivesse dilacerado. Minhas ficções.

Numa das muitas tardes em que vaguei a esmo pela cidade, atividade que sempre me foi muito prazerosa, comprei numa pequena e adorável livraria que já não existe, a Dazibao, um exemplar de Qohélet / O-que-sabe, tradução de Haroldo de Campos para o livro Eclesiastes, da Bíblia. Esse livro sempre me pareceu uma estranha pedra, vestígio de um meteorito no solo sagrado. Encantava-me também aquele homem que havia abolido o verso dedicar-se a traduzir tais versos, atribuídos ora a Salomão, já idoso, ora a múltiplos autores que compilaram no livro, talvez, outras tantas vozes.

Desde os tempos da universidade me deixava maluco o trabalho dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e de todos que se envolveram de alguma forma na aventura do concretismo. Todos aqueles lançamentos da Editora Perspectiva, Coleção Signos, passaram pela minha mão em algum momento… as traduções de Mallarmé (Um lance de dados jamais abolirá o acaso…), Verso Reverso Controverso, com as traduções de Augusto de Campos e seus estudos construindo uma ponte da poesia provençal até os cantadores nordestinos. Entrevistas, poemas, manifestos, traduções… era um redemoinho concretista que movia a mim e alguns amigos no Centro de Artes e Comunicação da UFPE. Aquelas mitologias dos anos 50 ou 60 nos empolgava como se fossem novas. E eram, porque acabávamos de tê-las descoberto.

Eis que li no jornal que Haroldo de Campos estaria no Rio de Janeiro para lançar seu novo livro, Bere’Shith: a cena da origem, mais uma tradução bíblica, dessa vez de um trecho do livro do Gênesis e do Livro de Jó. E essa era a minha oportunidade de estar diante de Haroldo de Campos, e verificar a realidade dessa pessoa, o sujeito que escreveu Galáxias, traduziu Maiakóvski e me abriu portas a tantos universos, pelos quais ainda hoje vagueio.

No dia 26 de junho de 1993 lancei-me na minha aventura mínima, que é o melhor tipo de aventura, de sair na noite do carioca sozinho, pela primeira vez. Tudo bem que eu já era um caba véio de 27 anos, mas havia algo de juvenil em pegar o ônibus e estar por minha conta rumo à Gávea, que parecia distante demais e Ipanema, onde eu estava. Como minha cota de livros estava esgotada com a aquisição de Qohélet , foi ele mesmo que levei para que HC estampasse uma dedicatória. Eu me sentia meio cara de pau com isso mas não tinha grana pra comprar a bela edição do livro novo. Capa com detalhes em alto-relevo… sempre mais caro.

O lançamento foi numa livraria chamada Marcabru, nome de um poeta provençal traduzido por Augusto de Campos no Verso Reverso Controverso. — Escoutatz! Creio que a Marcabru, que ficava no Gávea Trade Center, ali na Marquês de São Vicente, não exista mais. Pareceu-me um espaço tão novo, tão luminoso, para mim que estava acostumado à Livro 7, no Recife, que era um enorme galpão no centro da cidade, na muvuca mesmo, cheio de estantes e prateira de madeira. A sensação era de que eu estava numa loja de cristais, cercado daquela gente bonita, elegante e inteligente, enquanto eu mesmo parecia evocar um Belchior, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes. Numa área da livraria havia cadeiras dispostas em fileiras e uma mesa. Ali o poeta leu os versos do seu livro, que hoje se misturam na minha memória. A leitura foi em português e hebraico, que ali eu escutava ser falado também pela primeira vez, provida por um senhor que acompanhava o poeta. Infelizmente não recordo seu nome.

Depois veio a sessão de autógrafos e apresentei ao mestre Haroldo de Campos meu exemplar de Qohélet / O-que-sabe. Ele sorriu ao apanhar o livro, trocou algumas palavras comigo e agradeci, não pela dedicatória que ele escreveu, mas por tudo, tudo que li por conta dele, todo o aprendizado daquelas inúmeras páginas que preencheram certo vazio da minha vida, certas tardes no gramado do Centro de Artes e Comunicação, certas conversas com amigos queridos. Saí dali como quem sai de um labirinto. A noite no Rio de Janeiro parecia nem ter fim. Para voltar à alguma realidade comi umas fatias de pizza numa Mister Pizza que havia ali perto. Só então retornei pra casa, embalado pelo motor do ônibus, relendo a poesia do Qohélet.

1. Palavras § de Qohélet filho de Davi §§
rei § em Jerusalém

2. Névoa de nadas(2) § disse O-que-sabe §§
névoa de nadas § tudo névoa-nada

3. Que proveito § para o homem §§§
De todo o seu afã(3) §§
fadiga de afazeres § sob o sol

Alum tempo depois retornei ao Recife, carregando comigo esse tesouro, para me exibir aos amigos. Entre idas e vindas fixei-me na cidade de São Sebastião em 1997, num 9 de fevereiro, dia do Frevo. E o livro de Haroldo de Campos não veio comigo, ficou na estante ou numa gaveta, ronronando como um gato, vivendo a vida que os livros vivem quando estão fechados.

No ano 2000 minha avó morreu. Eu trabalhava então na Gávea, não muito longe de onde era a Marcabru. Lembro de receber um telefonema da minha mãe para dar a notícia de que havíamos perdido Mariola. O ano 2000, para mim que nasci em 1966, era um marco do futuro. Sabíamos que não seria assim, mas parecia que uma chave seria virada e o mundo se transformaria no futuro dos carros voadores e da inteligência artificial. Virou-se sim uma chave e o futuro era minha avó. E o passado se diluia, perdendo mais uma narradora. Até hoje essa perda é uma estranheza. Por não ter participado dos ritos de despedida, é como se a minha avó tivesse sumido. É uma pessoa que não vejo mais em Natal, quando visito a família. Talvez devesse numa dessas viagens visitar seu túmulo, que acredito estar no cemitério do Alecrim, bairro de sua vida. Talvez assim, diante de uma lápide eu realizasse para mim mesmo sua morte. Ou não. Prefiro então que ela seja essa figura oculta, mencionada nas conversas, e que a qualquer momento pode adentrar a sala com seu corpo frágil, sua mente ágil.

Se alguém pudesse ser um livro, como em Fahrenheit 451, Mariola, minha avó, seria Horto, de Auta de Souza. Eu era criança ou adolescente e não sei se era seu livro predileto ou mesmo se gostava. Mas Horto ficou atado à sua memória, à lembrança que tenho de sua casa de porta e janela no Alecrim. Poeta nascida na cidade de Macaíba, no Rio Grande do Norte, nasceu em 1876 e morreu no alvorecer do século 20, em 1901. Publicou Horto , seu único livro, em 1900, com prefácio de Olavo Bilac. O historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo, seu biógrafo (Publicou em 1961 o livro Vida breve de Auta de Souza), escreveu assim sobre sua biografada: Não pode haver duas opiniões sobre Auta de Sousa. É a maior poetisa mística do Brasil. No seu pouco tem de vida causou impressão. De cunho romântico e luzes simbolistas, a poesia de Auta era muito musical e 14 dos seus poemas foram musicados. Certamente a descansar numa varanda, Mário de Andrade, registra em seu Um turista aprendiz:

Hoje estou gozando a vida na Redinha… Chega um choro, clarineta, violões, ganzá, numa série deliciosa de sambas, maxixes, valsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada. Modinhas de Ferreira Itajubá e Auta de Sousa… A boca da noite se abriu sem a gente sentir.

Horto era um livro da família. Tinha um na casa da minha avó, na casa da minha tia… por onde a gente ia tinha um exemplar. E nós líamos, eu e meus primos. E aquilo definitivamente nos marcou. Era como possuir um segredo. Ninguém conhecia Auta de Souza fora do círculo familiar natalense, porque Auta de Souza sumiu do mapa das leituras, numa espécie de esquecimento. Mas ano que vem são 120 anos de sua morte, uma boa deixa para colocá-la num merecido primeiro plano nacional. Aquela poeta negra de Macaíba sempre esteve comigo e no 16 de janeiro de 1988, já com 21 anos e frequentando a mesma universidade em que debatia ardorosamente os concretos, dei a Mariola um exemplar de Horto e escrevi-lhe na folha de rosto uma dedicatória. Não lembro o motivo desse presente… se eu conheci esse livro na casa dela, porque eu o daria a ela de presente? Perguntas que nunca mais terão uma resposta. porque eu mesmo não lembrava mais desse episódio. E isso só veio à tona por conta desses jogos em que o acaso nos enredam, alinhamento de circunstâncias… coisas que vão se tecendo desde longe na história da gente.

Em novembro passado visitei Natal, para rever minha mãe, que após uma vida inteira de saudade morando no Recife, retornou à sua terra, jamais esquecida. Revi a cidade em que nasci, seus dias iluminados, as águas mornas de Ponta Negra, a família, meus primos, tio e minha tia, irmã da minha mãe, que enfrentava algumas questões de saúde Queria muito vê-la e transmitir-lhe algo que eu não saberia lhes dizer o que é, mas posso dizer que ela recebeu.

Nessa viagem de muitos reencontros, surpreendeu-me reencontrar justamente esses dois livros, o de Haroldo de Campos e o de Auta de Souza. Ambos na nova casa da minha mãe. Ambos viajaram com ela do Recife para Natal, sem falar em tudo que lhes aconteceu nesses mais de 20 anos até os dias em que os vi pela, então, última vez. Quando Mariola morreu minha tia ficou com o livro de Auta de Souza e oportunamente, com certeza movida pela dedicatória, o entregou a minha mãe, que o guardou. Já o Qohélet estava para lá e para cá com minha mãe, sobrevivendo às mudanças de casa e arrumações, por anos a fio, até chegar de volta às minhas mãos.

O de Auta eu vi por acaso sobre um móvel e comentei com minha mãe se podia levá-lo comigo. Era um livro que eu há muito queria ter e não estava encontrando. Ao abri-lo esbarrei na dedicatória e tudo me veio: Para Mariola, uma lembrança do seu neto o Recife. Junior. 16-1-88. E assim o livro tornou-se meu. E ambos, Qohélet e Horto, vieram comigo para o Rio. Por isso não acredito em ficar para trás. Acredito na vida, na teia obscura dos acontecimentos que conduz coisas e pessoas mundo adentro.

Reencontrar esses dois livros me conecta com o que eu sou, ainda mais em tais circunstâncias. São livros formadores, sem os quais tanta coisa teria sido outra; ensinaram-me poesia e música, tão musicais que são. Trago ainda hoje da melodia do hebraico ecoando na Marcabru. Dois livros que não poderiam ser mais distintos; em qualquer estantes estariam separados até na ordem alfabética, e no entanto se fundem na minha história de leitor, na minha história familiar e de assombramento com o mundo. Por isso incomodam-me as classificações, os rótulos. Na minha estante e na minha memória, Auta de Souza e Haroldo de Campos estão lado a lado