Aristocracia Carioca | Severino Dadá: O cangaceiro da moviola na terra de São Sebastião

Texto de Rodrigo de Oliveira e fotos de Michael Ende

Texto publicado originalmente no número 3 da Revista Zé Pereira, em outubro de 2007, na seção Aristocracia Carioca


Como boa parte dos que vivem no Rio, Severino Dadá é um carioca nascido na rodoviária. Foi no começo de 1969 que Dadá aportou por estas bandas, na condição de “elemento de alta periculosidade”. Vinha fugido da perseguição política em sua terra natal, Arcoverde, no interior de Pernambuco, onde era radialista e militava nos movimentos de resistência à ditadura. Este segundo parto, depois da longa viagem de ônibus, não marcou apenas o início da relação com a cidade pela qual Dadá se apaixonou imediatamente. O desembarque na rodoviária define também o começo da carreira de um dos mais importantes montadores do cinema brasileiro.

Severino Dadá

Dos primeiros tempos na cidade, vivendo de favor na casa de conterrâneos e empregado num terminal de petróleo da Ilha do Governador, Dadá se lembra com uma alegria pouco comum nos relatos daqueles que chegam sozinhos e sem dinheiro numa cidade estranha.

— Meus amigos me disseram: “Venha pra cá, aqui você não vai passar fome, não…”. Pô, eles comandavam uma churrascaria lá na Ilha, eu ia passar fome de que jeito?
– brinca. A chance de subir na empresa petrolífera, no entanto, foi logo sustada. Sua jornada carioca tinha outro objetivo.
— Eu descobri que o pessoal de cinema fazia ponto no Beco da Fome, na Cinelândia, ali na Rua Álvaro Alvim e suas transversais. Trabalhava muito na quinta pra ser liberado na sexta, às duas da tarde. Aí, com grana e solteiro, eu me mandava pro Beco, pra ver as pessoas. “Porra, ali é o Wilson Grey!”.

Numa das bebedeiras de sexta, Dadá esbarrou com o cineasta Fernando Coni Campos, que se preparava para rodar um documentário sobre o Campo de Santana, com filmagem já no dia seguinte. Dadá não pensou duas vezes antes de aceitar o convite para participar da tal filmagem. Saíram da cervejada direto para o set. — Voltei pra Ilha na segunda, numa ressaca
fodida, pra pedir demissão. “Me cortaram da rádio, mas agora meu nome vai aparecer é na tela do cinema de Arcoverde!”. Era uma coisa infantil, mas era um amor.

A memória cinematográfica de Dadá chega até sua primeira infância. No pequeno povoado de Pedra, onde vivia com a família, o menino se encantou com a invenção trazida por um grupo de ciganos. Instalados no armazém de um tio seu, o espetáculo noturno incluía um grande lençol branco estendido no fundo do salão, um projetorzinho barulhento e as cadeiras que cadaespectador trazia de casa. O cardápio? Buster Keaton, Charles Chaplin, O Gordo e o Magro, além de uma das inúmeras versões de Tarzan. Mais tarde, com a mudança para Arcoverde, veio o deslumbre do 35mm e dos 1.100 lugares do Cinema Bandeirante, “o gigante da Praça da Bandeira”. A cinefilia explode na juventude, quando passa a trabalhar no serviço de alto-falante do cinema concorrente, o Rio Branco. Dadá era o locutor dessas transmissões, e quem trabalhasse num cinema podia entrar de graça no outro. Esse foi seu equivalente a um curso universitário:

— Passei uns quatro anos vendo um filme por dia, às vezes até mais que isso, sem pagar nada. Nas mesas de bar da cidade, Dadá era tido como o cinéfilo-mor. E o status de “especialista” se amplia quando cai em suas mãos uma edição de “O Cinema: sua arte, sua técnica, sua economia”, livro clássico do historiador francês George Sadoul.
— Aí vem a minha grande transação de descobrir o cinema mesmo, o enquadramento, a geometria, a decupagem, a linguagem. Ainda em Pernambuco, fez parte da equipe que rodou a primeira versão cinematográfica de “O auto da Compadecida” (“A Compadecida”, 1969). Foi esse conhecimento que lhe garantiu os primeiros empregos no começo da carreira. Numa temporada de dois anos em São Paulo, foi assistente de direção de Ozualdo Candeias e de José Mojica Marins. Impressionado com sua habilidade para decupar os roteiros (transformar uma frase escrita numa imagem roduzível), Victor di Mello o convoca para participar da continuação das filmagens de seu “Quando as mulheres paqueram”, agora no Rio. E assim, de 1971 em diante, Dadá se estabelece definitivamente em terras cariocas.

O salto decisivo para a carreira que o consagrou vem com o convite para trabalhar com o lendário Nelo Melli, argentino radicado no Brasil, responsável pela montagem de obras-primas como “Porto das Caixas” e “Vidas secas”. As lições do velho Sadoul e o cinema consumido avidamente nas telas pernambucanas reverberavam até este momento, e chegam aos ouvidos de Melli:
— “Tengo la información de que usted domina a linguagem, e tiene una intuición cinematográfica muy forte”. Porra, além de dominar a linguagem, eu também sou intuitivo, é? — diverte-se Dadá, imitando o sotaque de seu primeiro mestre.

“Porra, além de dominar a
linguagem, eu também sou
intuitivo, é?”

É Melli também que o apresenta a Nelson Pereira dos Santos, com quem formaria uma parceria definidora de sua vida. De 1974, de “O Amuleto de Ogum”, primeiro longa-metragem que montou, para cá, foram mais de 300 filmes realizados, entre as funções de montador e editor de som, num espectro de realizadores que vai de Neville D’Almeida a Paulo Thiago, do cearense Rosemberg Cariry ao boliviano Jorge Sanjinés, do cinema marginal à pornochanchada. E todos estes trabalhos podem ser resumidos numa experiência inusitada à frente das câmeras. Foi em “Tenda dos milagres”, adaptação de Nelson Pereira para o romance de Jorge Amado. O diretor chega um dia para Dadá e diz que tem um personagem para ele interpretar: “É você mesmo, ora!”. Criando a estrutura do filme-dentro-do-filme, Nelson fizera com que o jornalista do romance decidisse filmar a história do sociólogo baiano Pedro Archanjo. Hugo Carvana faz o jornalista e, em diversas inserções ao longo de “Tenda”, o vemos discutir com Dadá, diante de uma moviola (a pesada máquina onde se editavam os filmes antigamente), que rumos dar ao trabalho que estão montando.

Nelson criou ali a imagem-símbolo do montador brasileiro. Não à toa, o Archanjo da ficção é chamado de Ojuobá, que significa “os olhos de Xangô”. Dadá, nordestinamente paciente, ouve as confusões do jornalista/cineasta,
recebe aquele monte de imagens filmadas sem muito sentido, e faz o trabalho de organização desse olhar. É o condutor destes olhos de Xangô.
E também dos olhos de Nelson Pereira e de tantos outros com quem trabalhou. Nascido Severino de Oliveira Souza, Dadá assinava no início
de carreira Severino de Oliveira. O nome artístico definitivo também lhe foi dado por Nelson:

— Dadá é um apelido de infância. Quem me deu foi minha avó. Um belo dia ao assistir “O Amuleto de Ogum” eu vejo Severino Dadá nos créditos. Fui perguntar o motivo para o Nelson, e ele me disse: “Pô, mas todo mundo te chama assim!”.

Já o apelido de “cangaceiro da moviola” parece bastante justo ao vermos a imagem de Dadá diante dos batoques e manivelas. Sua dimensão sertaneja é inegável. Costuma dizer que foi apadrinhado pelo piauiense José Medeiros, grande fotógrafo com fama de antipático, por conta de uma certa “máfia nordestina” que opera entre os que de lá vieram. Talvez seja por essa mesma relação que, circulando pela Glória, onde vive hoje, Dadá reconheça cada um dos nordestinos que passam por ele. O atendente do bar não precisa falar mais de uma frase para que Dadá reconheça imediatamente seu estado de origem, e talvez até a cidade. E a figura expansiva, em todo seu encolhimento e pouca altura, segue risonha pelas ruas do bairro que biografou em “Memórias da Glória”, média-metragem de 2005. Dadá, casado há 32 anos com dona Socorro, fala do Rio de Janeiro com uma propriedade invejável. Conhece, com precisão de “Guia Rex”, suas ruas e bares — sobretudo os bares.

— Não existe cinema sem um botequim.

No histórico Botequim da Líder, na esquina da Álvaro Ramos com a Rua da Passagem, em Botafogo, que ficava em frente ao maior laboratório de cinema da cidade, era obrigatório o trajeto entre a sala onde se projetavam os copiões dos filmes e a mesa em que seriam avidamente discutidos — e bebidos. Quando a Líder se muda para Vila Isabel, onde Dadá vivia desde 1974, a coisa fica ainda mais intensa.

Na Vila, Dadá passou quase 20 anos, e esteve próximo do melhor do samba carioca. Conta que o amigo Rogério Sganzerla tinha duas grandes obsessões: Orson Welles e Noel Rosa. Da primeira, Dadá deu conta ao montar “Nem tudo é verdade” e “A linguagem de Orson Welles”, filmes do diretor que comentam a passagem do cineasta americano pelo Brasil, nos anos 40. Da segunda, bastou apresentar a Vila Isabel ao amigo. A formação musical dos
dois os aproximou ainda mais. Dadá e Sganzerla dividiam um passado no rádio, escolados na música popular brasileira. Noel era figura obrigatória nas conversas, e se o grande musical imaginado por Sganzerla, que narraria a história deste e de outros baluartes do samba, nunca se realizou, temos pelo menos o belo “Isto é Noel Rosa”, média-metragem de 1990.

“O Waly com aquela boca
enorme, gesticulando,
recitando e interpretando os sambas todos.
O Martinho da Vila teve uma
crise de riso, e riu tanto que
se mijou todo.”

Este, Dadá não montou, mas certamente as “visitas guiadas” à Vila influenciaram bastante sua realização. Essas visitas renderam, no mínimo, ótimas histórias:

— O Rogério levava umas pessoas diferentes lá pra Vila. Uma vez apareceu lá no Boteco do Souza com o Waly Salomão, completamente louco. O Waly com aquela boca enorme, gesticulando, recitando e interpretando os sambas todos. O Martinho da Vila teve uma crise de riso, e riu tanto que se mijou todo.

Ouvir Dadá contando estes casos de sua vida deixa a impressão de que ele sempre esteve nos lugares certos na hora exata em que alguma coisa entrava para a História. Mas, a onda da “retomada”, este bonde Dadá não pegou. É uma politicagem que não lhe interessa, que vai contra os seus princípios.

— Eu não vou fazer nunca um filme comportado — sentencia.

Os tempos mudaram, de fato, e Dadá soubese adaptar a eles sem perder a ternura, jamais. De um lado, não consegue entender como a tecnologia transformou em montadores aquilo que chama de “apertadores de botão de computador que pensam que ritmo cinematográfico é baticum de axé-music no liquidificador da linguagem televisiva”. Do outro, juntou-se a uma turma jovem que sabe apertar o botão sem esquecer de pensar naquilo que faz. Com a ajuda de seu filho André Sampaio, premiado curta-metragista e um dos diretores de “Conceição – Autor bom é autor morto”, vira-se bem na condição de cangaceiro da moviola que precisa se transformar, de uma hora para outra, em cangaceiro do mouse.

— A dinâmica de trabalho com meu pai é bastante natural, e a minha presença ali do lado dele garante essa passagem do analógico para o digital — diz André. — Mas não existe essa coisa de “papai” e “filhinho” quando estamos na ilha de edição, não. Ele me esculhamba, vive dizendo “joga essa merda fora, isso aí não diz nada!”, e aí corta fora uma seqüência.

O trabalho com Dadá parece ser mesmo assim, movido a paixões e arrebatamentos. O jornalista Luís Alberto Rocha Melo foi seu parceiro na realização dos dois únicos filmes que o montador dirigiu até aqui, além de “Memórias da Glória”, também o documentário “Geraldo José — O som bem barreira”, sobre o mais requisitado sonoplasta do audiovisual brasileiro.

— Ele, filmando, ficava numa alegria danada. — recorda Luís Alberto, que prepara neste momento uma cinebiografia de Severino Dadá. — Às vezes ele se emocionava mais com uma história do que o próprio depoente que a contava. Isso sem falar que nos trechos ficcionais do “Geraldo José”, onde Dadá prova que tem um talento extraordinário pra dirigir comédia.

Um talento que esperamos ver materializado em breve. O projeto de cabeceira de Dadá, sua primeira incursão pela ficção, é uma comédia musical chamada “Oxente, my love”. O roteiro, escrito em parceria com André e Luís Alberto, conta a história de um pequeno cortiço localizado
na sua querida Glória, que em determinado dia é tomado por dois pivetes fugindo da polícia.

— Ali dentro vivem um ex-policial que tortura um boneco só para não perder a prática, uma vedete aposentada, a Dona Rosinha Fuqui-Fuqui, um negão intelectual militante do antigo Partidão, os filhos do policial, um viado e uma travesti que faz ponto na Augusto Severo. É o escracho total.