Coração Alado – Encontros do acaso ou sonhos lúcidos?!

Texto de Toinho Castro


A vida é cheia de pequenos diálogos de encantamento. Palavras inesperadas, trocadas em encontros fortuitos, randômicos, que parecem cenas em câmera lenta em meio ao corre-corre da vida. São conversas curtas, em geral entre pessoas que nunca se viram, não se conhecem, e se encontram por acaso para, em seguida, serem tragados pelo rodopio do mundo e nunca mais se encontrarem. São como sonhos lúcidos. Fica sempre a dúvida se aquilo aconteceu mesmo ou é uma invenção, uma fabulação das nossas mentes em busca de histórias pra contar.

Era uma vez, lá no Recife, anos 1980, peguei o CDU (Cidade Universitária) x Boa Viagem, num fim de tarde, para voltar pra casa, na Imbiribeira. No próximo ponto entrou uma garota bem bonita e sentou ao meu lado, num banco ali na parte traseira do ônibus. Naquela época a catraca/roleta/borboleta (depende dos regionalismos!) ficava numa posição que permitia você sentar na parte de trás do ônibus e só passar por ela (e pagar) quando quisesse. Isso acabou porque não era pouca gente que descia pela porta traseira sem pagar na primeira oportunidade! Mas enfim, eu carregava nas mãos uma edição de Cândia Erêndira, do Gabriel Garcia Márquez.

A garota havia acabado de se acomodar ao me lado e mirou o livro nas minhas mãos e comentou: Adoro, Garcia Márquez. Eu também adorava, claro, disse-lhe. E assim começamos uma breve conversa agradável, que foi interrompida bruscamente quando o ônibus entrou numa rua e ela, olhando ao redor, pelas janelas, perguntou: Que ônibus é esse?! Quando eu disse que era o CDU x Boa Viagem, o ônibus parou imediatamente no ponto seguinte e, antes de saltar pela porta de trás, me falou apressada: Peguei o ônibus errado. Nunca mais nos vimos. Ela certamente não recorda, creio, esse encontro. Do rapaz abobalhado sua presença e um livro de Garcia Márquez nas mãos.

Sumiu no Maelström do mundo. Vive uma vida outra, e talvez leia ainda Garcia Márquez. Vai saber. Nunca mais nos vimos.

Teve também esse encontro sem palavras, já no Rio de Janeiro. Numa tarde chuvosa, numa rua de Ipanema, vinha eu sem guarda-chuva e ensopado, com os óculos cheios de gostas e meio embaçados. E lá estava, caminhando na mesma calçada, em minha direção, de sobretudo e uma um elegante guarda-chuva, ninguém menos que Norma Bengell. Ali, o cinema brasileiro passando por mim. Não dissemos nada, sequer um boa tarde. Mas ela olhou pra mim e sorriu. E eu sorri de volta. E seguimos por uma Ipanema coberta de chuva e frio. Pra mim, é como cena de um filme. Um curtíssima metragem que fiz com Norma Bengell. E só eu e ela assistimos.

Eu e uns amigos tínhamos um jogo bobo, mas que nos aquecia… quem encontrasse alguém significativo pra gente, do mundos das artes, ganhava uns pontos, dependendo de quem fosse. Norma Bengell era tipo 10 pontos com estrelinha!

De outra feita estava eu no querido Teatro Rival, que a gente ama (Teria sido um show do Otto?!), e deu-se essa outra cena de cinema. não um filme qualquer, mas de cinema brasileiro, tipo assim Cidade Oculta, do Chico Botelho. Uma dessas coisas que somente mesmo o acaso, esse contador de histórias, pode nos proporcionar. Encostei pois, ali no balcão de bebidas do Rival, assim recordo, e nos alto-falantes do bar tocava, anacronicamente, Noturno, de Fagner, também conhecida popularmente como Coração Alado, por conta do refrão. Música que grudou nas rádios e nos nossos ouvidos quando foi música de abertura da novela Coração Alado, na Globo, em 1980.

Enquanto esperava meu chope (ou terá sido uma cerveja?!), uma moça postou-se ali ao meu lado e, virando pra mim, comentou: Minha mãe adora essa música. Olhei pra ela e era a Fernanda Torres, que esperava também sua bebida, qualquer que fosse. Comentei meio tímido, por conta daquela aparição que se dava junto a mim: Ah, a minha mãe também adora!

Por que toda mãe adora Fagner?! — Perguntou ela, não pra mim, mas meio a esmo. E só me restou um Pois é!. Rimos enquanto nos afastávamos do bar e um do outro; ela com seu chope e eu com a imagem de Fernanda Montenegro ouvindo Fagner emocionada, numa tarde carioca qualquer, como a minha mãe, lá no Nordeste.

Fernandinha certamente não recorda dessa cena. Imaginada, talvez?! Ainda hoje acho que aconteceu e espero que relatá-la aqui não seja algum tipo de indiscrição. Dona Fernanda (a mãe!) esse vídeo aqui é pra senhora e pra minha mãe. Espero que ainda goste de Fagner.

E enquanto escrevo essa linhas tortas, que são as boas boas de escrever, recordo outro breve episódio, de encontro assim como o de Norma Bengell. Lá na rua do mesmo Rival, passando apressado entre as mesinhas de um bar, vejo ali sentada ninguém menos que Angela Leal, que no meio do bate-papo animado com as amizades à mesa, encontrou um lapso de segundo para sorrir pra mim e o mundo girou em frente ao Rival, teatro que ela dirigiu.

Como esses, muitos outros aconteceram comigo, e acontecem com muitas pessoas a cada dia que se passa. Gente mundo afora esbarrando em diminutos maravilhamentos poéticos. Encantamentos de gentes por aí. São os hai-kais dos encontros. O que resta deles, a memória que vai refabulando e se desmanchando. Virando sopro e sonho.


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