A poesia de Ana Oliveira Revista Kuruma'tá, 17 de abril de 202310 de outubro de 2023 Hoje recebemos com alegria a poesia da portuguesa Ana Oliveira, que nos chega pelo nosso inbox mágico! Seja bem-vinda ao Brasil, Ana, pela porta aberta da Kuruma’tá! Ana Oliveira nasce no Alentejo, em Portugal em 1960. É licenciada em filosofia. Leciona durante algum tempo, estando atualmente ligada a atividades em infantário. Edita cinco livros de poesia. Grito de liberdade em 2008, Espírito Guerreiro em 2014, Estilhaços no Caminho em 2021, Ao encontro da Terra e Devir Quântico em 2022. Sem piso para andar sinto-me suspensa na forca Como se o colete de forças me envolvesseSem hipótese de me libertar Ana Oliveira, em foto do fotojornalista José Lorvão Interstícios do oculto Tenho os gatos por companhiaE a tala de gesso que contraria a dor da quedaComo se fosse a comunicação da fuga para o paraísoJá que o inferno permanece nas sinapses das arritmiasAnunciadoras do salto para dentro do ocultoEm que o oxigénio escasseia e o lar se divideNão fazendo parte da mesma colmeiaE as sequelas alargam o pesar de um tempo oprimido e mudo O peso e a força da tradiçãoGravado na genética das reaçõesGesticuladas na multidão sem poiso e sem açãoVence um virar gélido de costasE uma recusa impotente em dar a mão Sem piso para andar sinto-me suspensa na forca Como se o colete de forças me envolvesseSem hipótese de me libertarPois que as intempéries troçam do meu tormentoSem paredes onde me refugiarE o voo das aves zomba com o meu sofrimento O individualismo cria espinhos em nome da autonomiaPerante as enchentes e o transbordo dos riosEstendem tapetes de lama nos caminhos alagadosObra de atmosferas revoltadas e dúbios prodígiosOu consequência castigadora de inusitados pecados O fogo de artifício mascara o desalentoDo final de um ano marcado pela continuação da guerraPelo silêncio das crianças órfãs E perante conflitos de paranoia do poderHonram-se os mortos por entre sorrisos alienados Estou por minha conta Ergo-me em luta para lá do altar profanadoInvento danças no meio da florestaSou então o próprio bailado em transeAlço a tocha defendendo o fogoEntão meu corpo é lava desenfreadaQue dá o grito da vida em incandescente brasa Mesmo num parto imperfeito de agoniaQue se prolonga no rasto magnético do mar em fúriaVomito as entranhas para enfrentar o duro geloNo corte invasor do bisturi acelerado da cirurgia que perdura Os genes são fluidos que se adaptam às marésNa construção de casulos onde renasço com asas Noutros ninhos suspensos na metamorfose dos matagaisÉ lá que mora o espírito ondulante do bem-quererMas o meu corpo quebradiço em final de escaladaSó perspetiva a sonoridade tentacularDa monstruosidade à solta que tudo modela a frioNum planeta que quer urgentemente mudar Germina a água revoltada nos chãos das casasFaço da insulação a força que controla a dorA poesia que concebo retorna à origem Acompanha a lanceta que esquarteja a carne Colocando a nu diferentes pavios em sombria dimensãoCom renovados deslizamentos de pele Não é bonita nem disforme nem benigna nem pérfidaÉ o único cobertor que tenho em invernos de inferno E acontece como explosão incontrolável da minha louca criação Ventos inquietos Abraço insegura um tempo de ventos ansiososSuspensos na indiferença das caligrafias trôpegasTroco alheada os dias fictícios e os lugares suspensos Como se interiormente inventasse uma maquinaria Que me teletransportasse para as ramificações do nada Enquanto o mundo desaba na clivagem bélicaNum conflito sem sentido em rodopioNa promoção incessante do horrorHá um folgo perto do fim que anuncia tempestadesDe intensidade lírica desmaiada Nos laivos de nevoeiro em meu redor Sou diminuta flor selvagem numa invisível bolha de inocência Teimosa adornando de pé a beira do caminhoQue ainda não foi calcada pela desenfreada manada de búfalosQue pisam e abalroam os terrenos áridos da existência Depois do estio asfixiante provocador de secas violentasDescoloridas pela ausência desmaiada das fontes Os lagos beijados pelas chuvas trouxeram de novoO sangue às veias outrora decepadas pelos penhascos da decadência E o meu corpo perdido e vacilante na dormência Agora o livre-arbítrio cai no saco roto da tacanhezE os tronos armadilhados suturam as feridas abertasPerfilhadas pelo flagelo da esquizofrenia diluenteCom o fantasma do nuclear a ensombrar o presente Ausência do toque Desabrocha a arquitetura adversa nas cidades do desconsoloPerante a agressão tácita que esconde a exclusão ocultaPesar que se entranha na teimosia de queimar o incensoEsfumando o espaço sobre o chá esquecido E a desidratação do corpo anunciando a quedaPerante o definhamento da empatia à solta Obscurecem os reflexos e atrofiam-se gaguejaresDespedaçando afetos caídos no poço fétido do cinismoAgora surgem os maestros da brutalidade em dor maiorPara um auditório ávido de repulsa e furor Nas pegadas germinadas por detrás do tecladoPermanecem vestígios de ofensas e perseguiçõesA comunhão adquire estatuto de fraqueza e imbecilidadeNum descarado sistema capitalista de opções insanas Que provoca sem pejo a quebra das ligações humanas Nesta gestão quebradiça todos se promovem a si mesmosNum ritual ríspido e frustrado visto-me do avessoE na saída da pandemia enfrentando a guerraO ser humano abate-se no centro dos víciosNo rumo mais fácil afundando-se no leito escuro de egoísmo A pegada dos gatos Depois da seca, a chuva torrencial a inundar as casas e as ruasAgora o final de janeiro empurrou o frioSobre este pequeno país de temperaturas amenasE os gatos marcam encontro no leito dos adultosAninham-se no nosso abraço correspondendo às carícias O sol entra a medo pelas janelas tristes e cansadasPermanece poucas horas abandonando estas paredesÀ humidade omnipresente e ao desconfortoE eu impotente e desarmada de mão amarradaDeambulo num ritual cortante escorregadioPiso inseguro entre leituras, escritosSeleciono imagens que abafam os gritos Só a estrela mãe carinhosa E a relva dedicada deste horto que me envolveMe segreda para serenar a minha almaQue contempla os reflexos do verdeNo banco de jardim de onde a euforia se ausentouA cintilação das cores trás com ela os anjosO chilreado dos pássaros anuncia gloriosos projetosO riso alegre e brincalhão das crianças Serve de base e sustento digno a outros intelectos Sei que germina a multiplicidade dos encontros Provocadores de línguas e juventude que acredita no futuroVejo-os passar como que gravando teses nos telemóveisVozes acenando ao vento os sonhos por concretizarNum idioma que me inunda a alma de tempos idosMe acaricia os devaneios e resplandece amore italianoMas que linguagem esta que me revoluciona o espíritoComo se fizesse parte do meu corpo que inspiraRenasce mastigando-me as entranhasInunda-me de luzAh Italia mi scorri nelle vene e portami a ballare sui monti A PoesiaPortugal