A poesia de Ana Oliveira

Hoje recebemos com alegria a poesia da portuguesa Ana Oliveira, que nos chega pelo nosso inbox mágico! Seja bem-vinda ao Brasil, Ana, pela porta aberta da Kuruma’tá!


Ana Oliveira nasce no Alentejo, em Portugal em 1960. É licenciada em filosofia. Leciona durante algum tempo, estando atualmente ligada a atividades em infantário.

Edita cinco livros de poesia. Grito de liberdade em 2008, Espírito Guerreiro em 2014, Estilhaços no Caminho em 2021, Ao encontro da Terra e Devir Quântico em 2022.

Sem piso para andar sinto-me suspensa na forca
Como se o colete de forças me envolvesse
Sem hipótese de me libertar

Ana Oliveira, em foto do fotojornalista José Lorvão

Interstícios do oculto

Tenho os gatos por companhia
E a tala de gesso que contraria a dor da queda
Como se fosse a comunicação da fuga para o paraíso
Já que o inferno permanece nas sinapses das arritmias
Anunciadoras do salto para dentro do oculto
Em que o oxigénio escasseia e o lar se divide
Não fazendo parte da mesma colmeia
E as sequelas alargam o pesar de um tempo oprimido e mudo

O peso e a força da tradição
Gravado na genética das reações
Gesticuladas na multidão sem poiso e sem ação
Vence um virar gélido de costas
E uma recusa impotente em dar a mão

Sem piso para andar sinto-me suspensa na forca
Como se o colete de forças me envolvesse
Sem hipótese de me libertar
Pois que as intempéries troçam do meu tormento
Sem paredes onde me refugiar
E o voo das aves zomba com o meu sofrimento

O individualismo cria espinhos em nome da autonomia
Perante as enchentes e o transbordo dos rios
Estendem tapetes de lama nos caminhos alagados
Obra de atmosferas revoltadas e dúbios prodígios
Ou consequência castigadora de inusitados pecados

O fogo de artifício mascara o desalento
Do final de um ano marcado pela continuação da guerra
Pelo silêncio das crianças órfãs
E perante conflitos de paranoia do poder
Honram-se os mortos por entre sorrisos alienados

 


Estou por minha conta

Ergo-me em luta para lá do altar profanado
Invento danças no meio da floresta
Sou então o próprio bailado em transe
Alço a tocha defendendo o fogo
Então meu corpo é lava desenfreada
Que dá o grito da vida em incandescente brasa

Mesmo num parto imperfeito de agonia
Que se prolonga no rasto magnético do mar em fúria
Vomito as entranhas para enfrentar o duro gelo
No corte invasor do bisturi acelerado da cirurgia que perdura

Os genes são fluidos que se adaptam às marés
Na construção de casulos onde renasço com asas
Noutros ninhos suspensos na metamorfose dos matagais
É lá que mora o espírito ondulante do bem-querer
Mas o meu corpo quebradiço em final de escalada
Só perspetiva a sonoridade tentacular
Da monstruosidade à solta que tudo modela a frio
Num planeta que quer urgentemente mudar

Germina a água revoltada nos chãos das casas
Faço da insulação a força que controla a dor
A poesia que concebo retorna à origem
Acompanha a lanceta que esquarteja a carne
Colocando a nu diferentes pavios em sombria dimensão
Com renovados deslizamentos de pele
Não é bonita nem disforme nem benigna nem pérfida
É o único cobertor que tenho em invernos de inferno 
E acontece como explosão incontrolável da minha louca criação

 


Ventos inquietos

Abraço insegura um tempo de ventos ansiosos
Suspensos na indiferença das caligrafias trôpegas
Troco alheada os dias fictícios e os lugares suspensos
Como se interiormente inventasse uma maquinaria
Que me teletransportasse para as ramificações do nada
Enquanto o mundo desaba na clivagem bélica
Num conflito sem sentido em rodopio
Na promoção incessante do horror
Há um folgo perto do fim que anuncia tempestades
De intensidade lírica desmaiada
Nos laivos de nevoeiro em meu redor

Sou diminuta flor selvagem numa invisível bolha de inocência
Teimosa adornando de pé a beira do caminho
Que ainda não foi calcada pela desenfreada manada de búfalos
Que pisam e abalroam os terrenos áridos da existência

Depois do estio asfixiante provocador de secas violentas
Descoloridas pela ausência desmaiada das fontes
Os lagos beijados pelas chuvas trouxeram de novo
O sangue às veias outrora decepadas pelos penhascos da decadência
E o meu corpo perdido e vacilante na dormência

Agora o livre-arbítrio cai no saco roto da tacanhez
E os tronos armadilhados suturam as feridas abertas
Perfilhadas pelo flagelo da esquizofrenia diluente
Com o fantasma do nuclear a ensombrar o presente

 


Ausência do toque

Desabrocha a arquitetura adversa nas cidades do desconsolo
Perante a agressão tácita que esconde a exclusão oculta
Pesar que se entranha na teimosia de queimar o incenso
Esfumando o espaço sobre o chá esquecido
E a desidratação do corpo anunciando a queda
Perante o definhamento da empatia à solta

Obscurecem os reflexos e atrofiam-se gaguejares
Despedaçando afetos caídos no poço fétido do cinismo
Agora surgem os maestros da brutalidade em dor maior
Para um auditório ávido de repulsa e furor

Nas pegadas germinadas por detrás do teclado
Permanecem vestígios de ofensas e perseguições
A comunhão adquire estatuto de fraqueza e imbecilidade
Num descarado sistema capitalista de opções insanas
Que provoca sem pejo a quebra das ligações humanas

Nesta gestão quebradiça todos se promovem a si mesmos
Num ritual ríspido e frustrado visto-me do avesso
E na saída da pandemia enfrentando a guerra
O ser humano abate-se no centro dos vícios
No rumo mais fácil afundando-se no leito escuro de egoísmo

 


A pegada dos gatos

Depois da seca, a chuva torrencial a inundar as casas e as ruas
Agora o final de janeiro empurrou o frio
Sobre este pequeno país de temperaturas amenas
E os gatos marcam encontro no leito dos adultos
Aninham-se no nosso abraço correspondendo às carícias

O sol entra a medo pelas janelas tristes e cansadas
Permanece poucas horas abandonando estas paredes
À humidade omnipresente e ao desconforto
E eu impotente e desarmada de mão amarrada
Deambulo num ritual cortante escorregadio
Piso inseguro entre leituras, escritos
Seleciono imagens que abafam os gritos

Só a estrela mãe carinhosa 
E a relva dedicada deste horto que me envolve
Me segreda para serenar a minha alma
Que contempla os reflexos do verde
No banco de jardim de onde a euforia se ausentou
A cintilação das cores trás com ela os anjos
O chilreado dos pássaros anuncia gloriosos projetos
O riso alegre e brincalhão das crianças
Serve de base e sustento digno a outros intelectos 

Sei que germina a multiplicidade dos encontros
Provocadores de línguas e juventude que acredita no futuro
Vejo-os passar como que gravando teses nos telemóveis
Vozes acenando ao vento os sonhos por concretizar
Num idioma que me inunda a alma de tempos idos
Me acaricia os devaneios e resplandece amore italiano
Mas que linguagem esta que me revoluciona o espírito
Como se fizesse parte do meu corpo que inspira
Renasce mastigando-me as entranhas
Inunda-me de luz
Ah Italia mi scorri nelle vene e portami a ballare sui monti