De Macabéa às minas do slam ou No princípio era a voz

Texto de Numa Ciro


Este estudo tenciona tornar audível a voz que, em mim, ecoa das leituras e releituras que faço há muitos anos, tentando acertar o meu tempo com a Hora da Estrela. Frente ao romance e, em seguida, ao filme, volto a ser criança, a que pede para que lhe conte aquela história infinitas vezes. Interrogo os mistérios inesgotáveis que habitam a poesia e a música, matérias primas desta obra.

Artigo publicado originalmente na Revista DLCV – Língua, Linguística & Literatura (v. 14, n. 1 – 2018), do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (Viva a Universidade pública como espaço de criação e pensamento)


Macabéa no parque quando conhece Olímpico.
Cena do filme A hora da estrela, de Suzana Amaral

Para Marcélia Cartaxo

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?1

João Cabral de Melo Neto


A CULPA É MINHAi

2017. Faz 40 anos que o romance poético A Hora da Estrela foi escrito por Clarice Lispector, exatamente no ano da sua morte. “Não fui ver a baleia que estava a bem dizer à porta da minha casa a morrer. Morte, eu te odeio”2. Vida e Morte: Esse par de significantes, sempre ativo, deu contorno temático ao conjunto da sua obra; à inquietação que a despertava para escrever: “Quando não escrevo estou morta”3; e a curiosidade sobre o inconsciente como saber, esse saber que não se sabe: Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe4. Neste sentido, o texto de Clarice nos põe a nu. Somos pegos de surpresa como uma criança perdida com o endereço no bolso.

1985. Suzana Amaral5 leva às telas de cinema esta obra literária e realiza o desejo de Rodrigo, o narrador: Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta. Resposta esta que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. A Hora da Estrela, o filme, é uma das mais belas obras do cinema brasileiro. Para fazer essa passagem impecável da arte literária à arte cinematográfica, a diretora contou com a perfeição do trabalho da atriz Marcélia Cartaxo6 e pode nos apresentar não o retrato de Macabéa, apagando a imagem que criamos dela em nossa leitura solitária. O que há de genial neste filme é que os mistérios de Clarice intocados não permitiram que compreendêssemos tudo: “Sou tão misteriosa que não me entendo”7.

2017. Escrevo este ensaio na tentativa de tornar audível a voz que em mim ecoa das leituras e releituras que faço há muitos anos tentando acertar o meu tempo com a Hora da Estrela. Frente ao romance e, em seguida, ao filme, volto a ser criança, a que pede para que lhe conte aquela história infinitas vezes. Interrogo os mistérios inesgotáveis que habitam a poesia e a música, matérias primas desta obra. O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma linha oculta fatal. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa.


A HORA DA ESTRELA

Há uma certeza em mim, uma indecência:
Que toda fêmea é bela
Toda mulher tem sua hora
Tem sua hora da estrela
Sua hora da estrela de cinema

Caetano Veloso 8

O que Macabéa queria mesmo era ser artista de cinema. Mas… Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais que isso? Onde essa menina nordestina encontraria as vias para se articular às redes sociais e dominar a matéria dos signos que a levariam, como atriz, ao set de filmagem?

Clarice toca de forma musical a dor que massacra os corpos despencados no abismo cavado pela divisão social em nosso país, considerado um dos mais desiguais do mundo em distribuição de riquezas: Quem organizou a terra dos homens? Há 40 anos, não passava pela cabeça de ninguém a mais leve desconfiança de que uma moça como Macabéa tivesse alguma chance de se transformar em estrela de cinema. “Já tentei reformar o mundo. Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coisas?”9. Nos versos de Caetano, “toda mulher tem sua hora de estrela/ estrela de cinema”. Mas Macabéa, que tinha olhar de quem tem uma asa ferida, carecia até do reconhecimento de ser uma mulher: (…) o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. (…) mal tem corpo para vender, ninguém a quer.

Qual seria a hora da estrela? Se, por um lado, os astros nos asseguram uma estabilidade pela constância com que se nos mostram, ao mesmo tempo dizemos que até mesmo as estrelas nascem e morrem. O desfazimento do sujeito “sem chance” de vingar no mundo dos desejos, fazendo vinco em todo e qualquer acontecimento. E assim o tempo dura ou se desfaz a cada frase do romance, e nos suspende como marionetes ao brincar com nossas certezas sobre o nome, o lugar, as pessoas – o homem, a mulher – as coisas, tudo: A Hora da Estrela é a hora da desinvenção do mundo. Lembrando Drummond: “Dessa hora eu tenho medo”10.


ELA QUE SE ARRANJE

Lispector é um nome estrangeiro, de outra distância, mas também provocante de estranhezas, como o nome Macabéa: “É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) disse assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…”. Não era, era meu nome mesmo”. “Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim.11

Escutemos a palavra ‘Macabéa’. Do lado da autora, Clarice era judia, alguns leitores da obra associaram aos Macabeus, antigos rebeldes judeus. É assim que somos fisgados pelos significados. Do lado da personagem, nos mordem os significantes. Esta palavra foi elevada à condição de nome próprio pela escolha da sua mãe: Um nome inventado e dado um ano depois do nascimento da criança. Ao nomeá-la, a mãe de Macabéa escolheu uma palavra que não era considerada, na sua cultura, apropriada para se transformar em nome de gente. Esta escolha demarca para a personagem aquele lugar de onde ela será sempre interpelada para explicar como aquela palavra vingou como seu nome: “Não sei o que está dentro do meu nome”. O que há de seguro dentro dos nomes? O que há de inusitado, no nome Macabéa, recebe o carimbo da fatalidade ligada ao seu nascimento: a recém-nascida era cobiçada pela morte iminente, a qual não deixaria a criança vingar, assim como quando se falam das plantas. A mãe fez uma promessa à Nossa Senhora da Boa Morte que lhe daria esse nome caso a Virgem a livrasse… da morte. Macabéa então é um nome/passaporte que possibilita à virgem nordestina transitar entre a vida e a morte na cidade grande. A Boa Morte sustentou sua vida. E não é por acaso que Macabéa o tempo todo se finge de morta. Não por uma simples adequação descolada do sintagma “Boa Morte”: Mas apenas para o leitor sofrer em seu lugar. Ele que se arranje com isso.


O DIREITO AO GRITO

Durante estas quatro décadas passadas, as mulheres moradoras de favelas e bairros nas periferias dos grandes centros urbanos – em sua maioria negras e nordestinas – deram início a um processo de mudanças, social e cultural, sem precedentes na nossa história: As Macabéas do Brasil periférico se tornaram irreconhecíveis. Não fosse A Hora da Estrela, jamais teríamos este encontro tão íntimo com a alma de moças como Macabéa, que talvez nem existam mais. Ou… não mais aquele olhar, o de Clarice, essa vidente literária do inconsciente: “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”.

A sensibilidade da autora, aliada à sua destreza em trabalhar com a matéria viva das palavras, nos revela uma verdade captada no que há de mais íntimo e singular na transeunte, o avesso do avesso do flâneur de Baudelaire, e constrói essa personagem fascinante que nos olha de um ponto de onde não podemos escapar. Assim, provoca em nosso corpo uma emoção inquietante, tanto por recebermos a visita das velhas lembranças, quanto pelo despertar de sentimentos ainda desconhecidos. Arrisco dizer que ninguém fica indiferente a Macabéa, oriunda do Sertão do Nordeste do Brasil, nem mesmo aqueles que supostamente estariam fora daquele contexto cultural e/ou social, como diz Rodrigo, o narrador: “Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? Ou confessa: Sei de muita coisa que não vi”.

Quando o repórter Júlio Lerner12 perguntou a Clarice onde ela foi buscar, dentro si, a personagem nordestina, ela respondeu que morou no Nordeste, e nos dá a impressão que ela sabe de alguma coisa disso que é preciso saber para ser dito na forma literária: Ela fala de um lugar que nos faz apostar na legitimidade de sua empreitada: ela carrega consigo o Sertão da sua infância em Pernambuco. Haveria esta isca interna que a fez fisgar aquele ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro, quando foi passear na Feira de São Cristóvão? O que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim.


REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES

É desse ponto que se posicionam os poetas do Rap, no universo simbólico do Hip Hop. Do ponto de vista de um lugar, apenas desse lugar, se poderá ter a visibilidade de uma determinada situação humana, a partir da qual se confere a legitimidade dos discursos inseridos em neste âmbito onde estão em jogo as relações de poder. “O investimento de uma voz pode constituir o traço que permite a um grupo se reconhecer” 13. Este “lugar de fala”14 é uma novidade que se constituiu como expressão de uma verdade sobre o mal-estar em nossa cultura nos dias atuais, através das vozes15 dos poetas e artistas até então habitantes de um gigantesco túmulo de silêncio: Os cidadãos trabalhadores atrelados à cadeia produtiva das riquezas, mas fora da cadeia de distribuição. Não me escapou neste ponto a lembrança das leituras que Lacan empreendeu sobre a mais-valia para precisar o verdadeiro sentido de alienação.

Este saber sobre o outro não se revela, através da escrita de Clarice, por uma identificação especular com a personagem em si mesma. É como se fragmentos de uma verdade exposta vindos desse lugar puxassem as cordas dos nossos nervos e fizessem vibrar em cada um de nós a voz do que supúnhamos ser a voz da nossa própria natureza. A inquietação maior é motivada pela dúvida sobre esta natureza, pela clarividência com que essa voz interior nos orienta no sentido de seguirmos o trânsito entre o fora e o dentro, o estranho e o familiar, o eu e o não-eu, o eu e os outros: “Se tivesse a tolice de perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão”. Quem pergunta é incompleto”.

O que nós analistas dizemos do nosso jeito: quem pergunta é o sujeito, tendo que se virar com essa incompletude pela falta que o constitui, bancar o seu desejo oriundo do oco de seu ser e, mais ainda, não recuar frente a angústia de saber sobre o impossível. Essa voz, que faz ecoar um saberzinho que seja sobre a verdade de nosso impossível ser, ecoa através das ondas sonora imagéticas da escrita ficcional: A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Trata-se da mesma voz que sopra os fragmentos desta verdade aos analisantes, através da associação livre. De repente, estejamos no divã ou na poltrona, viramos a formiguinha passeando na banda de Moebius. Todos somos leitores: o analista, o analisante, até mesmo os leitores.


QUANTO AO FUTURO

Defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos,
gastando pouco de sua vida para esta não acabar.

No dia 13 de outubro de 193516, Freud recebeu a visita do escritor americano Thornton Wilder17. Conversa vai, conversa vem, Freud confessou o desejo de que a psicanálise fosse assimilada de tal forma que aparecesse na ficção como “romance puro”. Lamentava que este processo talvez durasse séculos, pois alguns escritores utilizavam a psicanálise na ficção de forma esquemática, ressaltando sua natureza clínica. Wilder respondeu que este autor que Freud procurava já existia, era James Joyce e que a sua obra Ulisses faz emergir a psicanálise como “romance puro”.

Não me consta que Lacan tenha se referido em algum lugar a esta visita. Mas calhou de ele ter se ocupado com a obra de James Joyce durante as apresentações do seu Seminário 23 – O Sinthoma18. Lacan disse: “Joyce é o signo do meu embaraço…” e provoca uma mudança sobre como interrogar uma obra de arte, não mais procurando-a entre as formações do inconsciente. A nossa atenção agora deve focar o saber fazer com o sinthoma. O estudo de Joseph Attié19 sobre a obra de Stéphane Mallarmé nos oferece uma rigorosa pesquisa sobre esta virada na obra de Lacan, motivada pela sua leitura das obras de Arte, precisamente a obra joyceana.

Freud sofria com o avanço da idade concomitante ao agravamento da sua doença, o que também fazia aumentar as suas preocupações sobre o futuro da psicanálise. Ele temia que a sua descoberta pudesse se transformar em mais uma ilusão que embalasse o futuro sombrio da civilização que ele sentia como se estivesse a desmoronar. Mal tinham sido recolhidos os escombros da Primeira Guerra e, de novo, já pesava no ar o prenúncio de uma catástrofe iminente, embora apenas um número muito pequeno de pessoas tenha conseguido decifrar com antecedência os sinais dessa catástrofe: a Segunda Guerra, que eclodiu no final de 1939. Freud foi um daqueles que não se deram conta de que o regime nazista estava se fortalecendo no próprio exercício da crueldade com a qual praticou o Holocausto, o genocídio contra o povo judeu, da forma como tardiamente conhecemos.

Durante a Guerra Civil Russa, a família de Clarice Lispector perdeu suas rendas em decorrência da perseguição aos judeus e dos extermínios de muitos deles e se viu obrigada a imigrar de lá, chegando ao nordeste do Brasil em 1922. Clarice tinha 2 anos de idade.

É oportuno nos lembrarmos agora do episódio da queima de livros em toda a Alemanha, no dia 10 de maio de 1933. Este episódio foi justificado pelo escritor nazista, Hanns Johst, como a “necessidade de purificação radical da literatura alemã, de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”. Freud concluiu que tínhamos progredido: em outros tempos determinados poderes constituídos queimavam os autores e naquela ocasião queimaram apenas os seus livros. No entanto, o grande poeta Heinrich Heine – que Freud admirava e de cuja obra fez comentários e citações em muitos pontos da sua obra – profetizou: “Onde se queimam livros, acabam-se queimando pessoas”. Quanto ao fato do poeta se antecipar ao psicanalista, é bastante conhecido o dizer de Freud, e depois a confirmação de Lacan, sobre o fato de que o poeta, o artista, o escritor criativo descobre antes de todos o que só depois os cientistas haverão de teorizar. Espero que nós analistas possamos ainda retirar lições inesperadas das obras dos autores e artistas contemporâneos.


ELA NÃO SABE GRITAR

Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona.

A ironia do destino escancara os dentes, quando o namorado de Macabéa, que também responde por um nome inventado, Olímpico, joga o peso do nome que carrega na cara de Macabéa, mangando do nome dela. O constrangimento abate o ânimo do leitor. Macabéa, por sua vez, conta o que sabe sobre a escolha de seu nome inventado pela sua mãe, dadas as circunstâncias perigosas. A Boa Morte a salva das convenções do mal-estar onde chafurdam os vivos, nesse mundo organizado pelas convenções sociais criadas para demarcar lugares de poder entre as pessoas: (…) ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. Macabéa parece indiferente ao tom irônico de Olímpico e recolhe, em seus (des)encontros, apenas as palavras toscas dele, sem valorizar a artimanha chistosa e violenta com a qual o rapaz a destitui do lugar de desejo. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? A nordestina sente ou não sente? Mostra ou esconde aquela dor que todos deveriam sentir?

HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL

A presença fascinante de Macabéa nos atrai pelo apagamento, por uma luz que surge do inesperado, da própria opacidade. Lá, onde nada devia existir, ela vinga. Sua teimosia em viver é um grito que se ouve no silenciar do próprio grito. Ela não fala porque não sabe o que dizer, mas porque não há quem a escute. Há um incômodo que parece vir do sentirmo-nos cúmplices sobre aquela certeza enclausurada no preconceito. A questão é muito sutil e carece de tempo para que essas próprias pessoas conquistem sua voz e o direito de falar. A nordestina é tida por ignorante, menos gente, advinda daquele lugar social de “inocência pisada”20, onde não se é gente de verdade. Mas na verdade, Macabéa dissimula o que sabe, recusa entrar no jogo onde ela já entraria como perdedora. É então que trago para este momento, a voz das Minas do Slam que são na minha leitura as Macabéas falantes. Assim se passaram 40 anos… Agora há quem escute o seu grito. Ingrid Martins, poeta das periferias grita os seus versos de vida e morte em praça pública: “Sendo culpados ou não/ somos julgados sem poder dizer o que somos/ Não temos direito a advogado/ pois somos julgados e condenados nas ruas escuras nos becos apertados/ Onde o nosso maior direito é o de ficar calado/ Todo-santo-dia somos silenciados/ E temos que ser fortes/ porque ainda há quem diga que no Brasil não existe pena de morte”.


LAMENTO DE UM BLUE

Slam é uma competição onde os poetas recitam ou leem seus poemas que devem ter exatamente 3 minutos, cujas performances são julgadas por um júri formado no início das apresentações. Eles devem levar em consideração a forma como o poema é dito para angariar a atenção do público e sustentar a curiosidade sobre o texto. Assim como os saraus que se espalharam pelas periferias de São Paulo e agora em todo o país, o Slam foi tomado pelos negros, pelas mulheres, pelos gays e transexuais, por toda gente que vive de um jeito que não era para vingar como sujeitos. Em sua maioria, são moradores de favelas e periferias das grandes cidades. Dizem que encontraram no Slam um “lugar de fala, lugar de ressignificação”21.

Há o Slam das Minas, constituído apenas por mulheres, como diz a poeta Jade, “como se fosse um outro mundo, um mundo à parte. Há o mundo onde as mulheres não falam e o mundo onde as mulheres falam. O Slam das Minas é o mundo onde as mulheres falam” 22. E falam do que estava calado em Macabéa que tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas.


ASSOVIO AO VENTO ESCURO

Roberta Estrela D’Dalva23, filha de pai nordestino com mãe paulista, é uma das precursoras deste modo de saber fazer com o sinthoma tomando a arte como arma de luta contra a condição de desvantagem das mulheres em relação aos homens com os quais compartilham o mesmo processo de divisão social no nosso país. As poetas do Slam são as estrelas das palavras que fizeram a sua Hora. Agora elas elevaram suas vozes, tomaram a palavra no grito e conquistaram o poder de serem escutadas e mais que isso: donas da voz do seu tempo. “Pois durante anos fomos silenciadas, amarradas/ Abusaram das nossas, as convenceram de que não eram nada/ Só que minha geração não fica mais calada, / Hoje minha boca é meu escudo e minha espada”24.


EU NÃO POSSO FAZER NADA

Podemos fazer uma aproximação entre os momentos iniciais do processo psicanalítico25, quando observamos os primeiros efeitos dessa leitura do inconsciente através de mudanças da posição subjetiva. Com as poetisas do Slam, que já publicam seus livros, reconhecemos este efeito simbólico quando ergueram as suas vozes de um silêncio secular, tomaram a palavra e sentaram-se à mesa das negociações simbólicas na cultura contemporânea brasileira. Assim como observamos no processo psicanalítico essa passagem do destino para a história, é saber notório que os artistas do movimento hip hop deram início a todo este processo. Hoje, as Minas do Slam também apanharam esse primeiro grito e se fizeram sujeitos de sua história pela mediação da arte, a exemplo da poesia de João Cabral: Tecendo a manhã26.


SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS

O narrador: Macabéa me matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte.

Clarice disse27: “Antes dos 7 anos eu fabulava. Eu ensinei a uma amiga um modo de contar histórias. Eu contava uma história e, quando ficava impossível de continuar, ela começava. Ela então continuava e, quando chegava em um ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia: ‘Não estavam bem mortos’. E continuava. Com 7 anos eu aprendi a ler”.

Então… tentando desculpar o narrador, fui buscar na infância de Clarice um lugar para a minha criança, que não cansa de ouvir esta história, e assim tratar minha impotência frente ao destino inexorável de Macabéa, na tentativa de salvar o que de mim morreria com a sua morte.

Clarice28: “(…) quando via um menino ou menina passar na porta de casa perguntava: ‘Você quer brincar comigo?’ Os não eram muitos, os sim poucos”.

Peço a Clarice para entrar na brincadeira e dizer: ‘Macabéa não está bem morta não’. E assim, me acalentei imaginando um encontro entre Macabéa, heroína e mártir do romance, com as Minas do Slam, que tem um dos lemas ligados nos parangolés simbólicos de Hélio Oiticica, com os quais se pode vestir o pensamento para ir à luta: SEJA HEROÍNA SEJA MARGINAL29. Eu li, eu vi: Macabéa saiu da cartomante grávida de futuro.

Vinte e dois anos depois da publicação do romance, Marcélia Cartaxo, a nordestina do Sertão da Paraíba, oferece a Macabéa o prêmio de melhor atriz: um dos mais prestigiados prêmios do mundo. Marcélia ouviu, quase no final, quando Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro: — Quanto ao futuro.

O Futuro serve para a gente inventar.


1 Poema de João Cabral de Melo Neto. Livro AGRESTES (1981-1985), in Obra Completa – volume único – página 560. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. Obra Completa – volume único – página 560. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

2 Morte de uma Baleia, in A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, pág. 127.

3 Última entrevista de Clarice em 1977, ao repórter Júlio Lerner. Ela pediu para que esta entrevista só fosse ao ar depois da sua morte.

4 Todas as citações em itálico são retiradas do Romance A Hora da Estrela.

5 Em 2015 o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

6 Como atriz, Marcélia Cartaxo, oriunda do Sertão da Paraíba, ganhou, por este papel, o Urso de Prata no Festival de Berlim.

7 “O MEU PRÓPRIO MISTÉRIO, in A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, pág.116. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

8 4Versos da canção, “A Hora da Estrela de Cinema” de Caetano Velloso, composta para o espetáculo de Maria Bethânia A Hora da Estrela, 1984.

9 CLARICE POR ELA MESMA, in Cadernos de Literatura Brasileira, pág. 67, 2004.

10 Verso do poema Anoitecer, in A rosa do Povo de Carlos Drummond de Andrade (1943 – 1945), musicado por José Miguel Wisnik. Faz parte dos CDs Pérolas aos poucos, 3003 e Indivízivel, 2011.

11 Ver nota 2.

12 Ver nota 2.

13 Tradução livre de minha autoria. Vives, Jean-Michel. La Voix sur le divan – Musique sacrée, opéra, pág. 22, techno. Flammarion, département Aubier, 2002.

14 Sobre isto ler O QUE É LUGAR DE FALA? De Djamila Ribeiro. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

15 Ver o artigo que escrevi sobre este tema na revista Z Cultural do PACC- UFRJ: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/vozes-da-periferia-de-numa-ciro-2/

16 Diário de Sigmund Freud – crônicas breves, Artmed Editora, Porto Alegre, 2000. Segundo Michael Molnar, organizador destas crônicas breves, “A visita do escritor americano está documentada tanto nas cartas de Freud quanto nos diários de Wilder. Este encontro serviu de ocasião para uma fascinante discussão sobre literatura e psicanálise, de Franz Welfel a James Joyce”.

17 Embora Freud tivesse elogiado seu livro The Bridge of San Luis Rey, numa carta a Arnold Zweig, como “maravilhoso” e recomendado a seu filho como “extraordinariamente belo”, disse ao próprio autor que jogara fora Heaven’s My Destination e lhe perguntou porque escreveu sobre um tema que não daria para ser tratado poeticamente.

18 O Seminário, Livro 23: o sinthoma, 1975-1976/Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques Alain-Miller; [tradução Sergio Laia; revisão André Telles]. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

19 Mallarmé O Livro – Estudo Psicanalítico.

20 Ver nota 2.

24 Mel Duarte, in Negra Nua e Crua. São Paulo: editora Ijuma, 2016.

25 Saber fazer com o real: diálogos entre Psicanálise e Arte / organização Marcia Mello de Lima e Marco Antônio Coutinho Jorge, Editor José Nazar. – Rio de Janeiro: Cia. de Freud: PGPSA/IP/UERJ, 2009.

26 Tecendo a Manhã, do livro A Educação pela Pedra (1962-1965), in

27 CLARICE POR ELA MESMA, in Cadernos de Literatura Brasileira, pág. 59, 2004.

28 Itinerários – Da Rússia ao Recife, in CLARICE – Uma vida que se repete de Nádia Battella Gotlib, pág. 74, São Paulo: Editora Ática.

29 Ver nota 14.

i Os títulos que abrem os 13 itens do artigo são homônimos aos 23 títulos dados por Clarice Lispector ao romance A Hora da Estrela.


EISSN 2237-0900 | ISSN 1679-6101


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A cena do filme A hora da estrela, de Suzana Amaral, que ilustra este texto, não faz parte da publicação original na revista DLCV – Língua, Linguística & Literatura.