Canudos é aqui

Texto de Nonato Gurgel


Quem sou eu para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou Montaigne?
— Jorge Luis Borges

Para Nilson Gurgel


Canudos não para. ‘Troia de Taipa’, ‘Monstruoso anfiteatro’ ou ‘Nossa Vendeia’, desde a guerra no sertão baiano, há 122 anos, Canudos não sai do imaginário cultural brasileiro. Canudos é o título da palestra da ensaísta Walnice Nogueira Galvão que vai abrir a Flip de Paraty, em Julho, cujos ingressos esgotaram-se 15 minutos após o anuncio virtual.

Em sintonia com a festa que celebra a nossa literatura, algumas vitrines cariocas exibem diferentes edições de Os Sertões, além de livros que interpretam a obra prima de Euclides da Cunha, o escritor homenageado da Flip 2019. Um desses livros é A terra, o Homem, a Luta, do ensaísta Roberto Ventura (1960-2002).

Quem já leu algum texto do Roberto sabe que os seus escritos de linguagem concisa possuem uma tonalidade meio literária que parece seduzir o leitor. Fruto de produtivo diálogo com a tradição literária e crítica, é como se o texto do Ventura condensasse em si muito do que foi dito sobre Os Sertões durante mais de um século, refazendo diferentes leituras literárias, científicas, históricas e religiosas em torno do ‘livro vingador’. Outro texto do Roberto compõe a seleta fortuna crítica de 14 ensaístas, recortada por Walnice Nogueira em sua edição crítica de Os Sertões.

Roberto Ventura lê Euclides da Cunha

A nova edição do livro A terra, o Homem, a Luta traz um belo prefácio do escritor Milton Hatoum, que linka Euclides da Cunha e Os Sertões ao escritor argentino Domingos Sarmiento, autor de Civilizacion y Barbarie. Acho que o escritor Jorge Luís Borges também faz esse link, sugerindo que o duelo entre civilização e barbárie fundamenta essas duas obras colossais da literatura latino-americana.

Uma das epígrafes do livro do Roberto é retirada de uma carta euclidiana, e diz muito das conexões entre literatura e vida na Belle Époque carioca: ‘Escrevo, como fumo, por vício.’ Euclides acunha logo no início do livro, quando num discurso no IHGB compara-se a um ‘grego antigo transviado nas ruas de Bizâncio’. É o mesmo homem que se autocognominou ‘Misto de celta, detapuia e grego’.

Bom mesmo é curtir a leitura mista que Roberto faz de Os Sertões, da guerra de Canudos e os pontos de identificação entre António Conselheiro e Euclides da Cunha. Roberto relê o cânone estético e cultural de Euclides e sua vida trágica, apontando, sem acusação, os erros, as contradições e os vários acertos do autor fluminense que estaria hoje no MST, segundo sua leitora mais autorizada: Walnice Nogueira Galvão.

Dentre os erros euclidianos, creio que chamar de louco e analfabeto o ascético e querido Conselheiro, talvez seja o maior. António foi professor. Dentre os vários acertos, gosto dele imaginar o sertanejo como a confluência do índio com o bandeirante paulista; assim como gosto do consórcio que ele inventa entre arte, cultura, história e filosofia. Essa mistura, essa hibridez potencializa a polifonia deste livro que não para de perguntar e de dizer, para cada geração, o que é o Brasil.


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