Poemas do Tesserato | Calí Boreaz

Tesserato é o nome do novo livro da poeta Calí Boreaz, cujo trabalho a gente aqui na Kuruma’tá tem acompanhado com atenção e encantamento. Sempre uma alegria quando ela manda poemas pra gente, pelo que há de surpresa, de delicada qualidade em cada verso. Sobre o livro, deixo aqui a palavra da poeta:

tesserato
é um súbito lugar de fusão. em toda a fusão existirá um momento de confusão? numa sucessão de interseções de espaços e tempos em movimento — como se estivessem girando num grande hipercubo —, o sujeito poético se desloca ao longo da imobilidade. toda a imobilidade conterá uma suspensão? nesse amplificar-se, entre estar e já-não-estar, entre a inexistência de um pouso e a espera por si mesmo já nesse pouso, é traçada uma inexplorada dimensão. os poemas — em verso e prosa — de tesserato são tentativas de atingir o tanto de um instante. mais do que contar o instante, porém, confessam seu intento de silenciar o que está em volta dele, para que ele, apenas, aconteça. por entre uma multidão de linhas retas se caminha em busca da curva — mesmo que a intuição aponte que se contorna um buraco onde, provavelmente, já se caiu. por entre espantos, de um olhar e uma escuta que se agarram à cidade — suas águas, janelas, ralos, gruas —, eis que, em algum lugar de sinergia, a própria existência parece querer refletir-se.

Poemas de Calí Boreaz


mamihlapinatapai

em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.

mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus… como posso eu

dizer algo agora daqui de onde estou?


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ainda sou muito nova para escrever este poema
percebo que a melancolia é um excesso
— de espaço e de tempo
percebo que sou dos cavalos que precisam
não do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossos
mas do próprio desaparecimento
— para iniciar o trote
percebo e procuro seguir o conselho de ferlinghetti
ouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terra
depois, desaparafusar as portas mas não
jogar fora os parafusos
que eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusos
não destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele
— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em mente
estou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusos
pendurado ao pescoço (e é pesado)
mais uma vez, mais uma vez
o dedo suspenso a um milímetro do botão da bomba
e não estou conseguindo interpretar os sinais
sou ainda muito nova para escrever este poema
mas já sei que o canto dos pássaros é de desespero
também já percebi que saber não chegar é tão
bonito quanto: chegar
de boniteza estamos bem, lá isso estamos
the boniteza is the new felicidade
a cidade anda medindo meus passos
de lupas nas pontas dos tentáculos
de cima de baixo dos lados e na diagonal
sobretudo na diagonal: a luz mesmo a raspar
mas sem aderir à minha pele
que é real
que é real
ter medo é ainda desconhecer
corrijo: ter medo é ainda precisar conhecer
eu não estou conseguindo interpretar os sinais
corrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do além
é só isto: enquanto uso palavras, as palavras
usam-me
enquanto pergunto à montanha, a montanha
pergunta-me
enquanto continuo aqui, o aqui
continua-me
ah, ouve bem isto:
ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feias
mas hoje eu estou cansada
então, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamente
não nos iludamos, meus vizinhos:
acabaremos sempre um pouco antes do fim
serei sempre muito nova para escrever este poema


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