Texto de Toinho Castro
Anjos não morrem. Dito isto, morreu um anjo. Não qualquer anjo, se é que há anjo qualquer. Morreu um anjo cinematográfico, ilusório. Ao mesmo tempo que anjo, um ser humano e também um ator monumental. Bruno Ganz, o anjo Damiel de Asas do desejo (Der Himmel über Berlin ,Win Wenders, 1987), morreu na madrugada de hoje. Na madrugada, como cabe aos anjos.
Conheci Bruno Ganz, provavelmente em 1988, como Damiel. Recordo sua aparição na tela do cinema, com seu par de asas sobre a Gedächtniskirche, a igreja bombardeada que ali está a lembrar-nos os tempos de guerra. Ele olha do alto a Berlin dividida pela mesma guerra. Ruas divididas, pessoas partidas. Tudo preto e branco num filme de amor. O amor de um anjo por uma trapezista de um circo mambembe. Por causa desse mesmo amor o anjo se torna homem,ponte entre dois mundos perdidos, dois ermos. Vá e veja o filme.
Quando conheci Bruno Ganz ele já tinha uma longa filmografia, que só cresceu depois de Asas do desejo. Vê-lo em outro filme era sempre uma experiência curiosa, porque para mim, lá no fundo, no mais dentro, estava o anjo. Mal sabia que o anjo estava em mim também. Como ainda está.
Não assisti A queda — As últimas horas de Hitler. Vi sequências de passagem no Youtube, vi paródias que infestaram a internet. Vi ali , nesse pouco, o mesmo grande ator que jamais esquecerei desde aquele dia, num cinema perdido no Recife, em que, junto com ele, vi Berlin do alto.
Éramos um grupo de amigos, na universidade, e amávamos cinema. Compartilhávamos gostos e experiências. Víamos filmes juntos, discutíamos nossos diretores preferidos e os grandes temas da arte cinematográfica e… éramos amigos de um projecionista. Com quarenta anos de trabalho nas salas escuras do Recife, Seu Alexandre, como o chamávamos, era um senhor gentil e generoso com aqueles jovens a rondá-lo por histórias. Tivemos, pois, a graça de assistir Asas do desejo com Seu Alexandre no comando do projetor. Ao final do filme, recordo, o encontramos na sala de projeção para conversar. Saímos de lá com vários pedaços do filme. Sim, pedaços mesmo.
Quem cresceu com o mundo digital não imagina que ao falar pedaços, falo mesmo da fita que era usada para projetar o filme. Ao longo das muitas projeções os rolos dos filmes se fragilizavam e se partiam com certa facilidade. Ao projecionista cabia aparar os pedaços e acertar as emendas. Nós, curiosos e amantes do cinema, ficávamos com as sobras desse processo. Por vezes seu Alexandre cortava um pedaço do filme e nos presentava; nos 24 quadros por segundo, que falta faria alguns quadros?
Guardo ainda hoje essas joias, esse pequeno tesouro da memória que agora une Seu Alaxandre, que também já se foi, com Bruno Ganz.
Bem antes de Bruno Ganz, havia nos deixado a atriz Domartin Solveig, muito jovem, aos 45 anos de idade. Ela era a trapezista. Vou me conceder o singelo direito de imaginar esse reencontro.
Texto de Toinho Castro