Só não pode esquecer Revista Kuruma'tá, 5 de abril de 20198 de março de 2021 Kuruma’tá recebe em sua lagoa de águas fundas o talento de mais uma parceira. A poeta carioca Adriana Nolasco vem até aqui falar de livros, trazendo até nós a relevância do trabalho de… Ops! Leia o texto e descubra. Bem-vinda, Adriana! O que fazer com a obra de um autor que você descobre que ama? Ler. Como achar a obra de um autor que você pode amar? Lendo. Quando falei pro Toinho (Castro) que tinha tido uma ideia pra escrever esse texto ele me disse: “só não pode esquecer”. Um belo e auspicioso começo. Porque tem coisa que a gente realmente não pode esquecer. Livros, por exemplo. Quem nunca teve aquela sensação de “que livro é esse? Obras que te marcam como uma cicatriz, que te desviam ou colocam no caminho, que alteram alguma trajetória, que são verdadeiras descobertas, te instigando, te aquietando, te agitando, te desafiando. Acontecimentos únicos e raros, mas que ao acontecer te dão a certeza de que algo aconteceu, mesmo que não se saiba onde. É preciso, no entanto, percorrer. Porque o único jeito de achar é procurando. Confesso que a idade tem me ajudado nisso: quanto mais velha fico, melhor leitora me torno, mais amor aos livros tenho, mais caminhos percorro, mais largas ficam minhas passadas. Afinal, alguma coisa tem que melhorar com o passar dos anos. Comecei tudo tarde, a ler de verdade inclusive. Essa fase esquisita chamada adulta me trouxe esse bônus. Na infância e na adolescência fui apenas uma leitora média, com outros tantos interesses me batendo à porta. Criança, lia o que a escola mandava, os livros que ganhava, a revista Pais e Filhos e depois as Mad do meu pai. Na adolescência desenvolvi um gosto especial por romances históricos ou livros que envolvessem história, principalmente medieval, egípcia e coisas do gênero. Mas foi na adultecência que ganhei a amplitude da variedade e, por pura sorte do destino, no geral, só me caíram coisas boas nas mãos. Por isso, a dificuldade de eleger, porque são muitos e todos muito bons. Não guardo uma lista dos meus livros preferidos de cor, precisando mesmo me esforçar pra enumerá-los. O que tenho é um método próprio, absolutamente caótico e desprovido de regras. Uma “leitora por contágio acidental”, podemos dizer, estimulada por uma sugestão aqui, um comentário acolá, uma indicação, um faro, um sentimento. Ou seja, o que me faz lembrar é justamente aquilo que não me deixa esquecer. E é nesse ponto que voltamos àquilo que não podemos esquecer: os tesouros, os achados, as leituras fora da curva, as que te tiram do chão, te atingem como um raio, te fazem encontrar um lugar, mesmo que momentâneo, te dão vontade de viver e, no meu caso, também de escrever. Usando o prodígio da memória, me arrisco a enumerar alguns autores que me causaram esse espanto, sabendo, no entanto, que nunca vou conseguir ser justa o suficiente porque tem sempre o risco de esquecer alguém. Mas aqui não é lugar pra justiça, aqui é lugar é pra afetos, então cito Lucia Berlin, Ana Cristina César, David Foster Wallace, Lawrence Ferlingheti, Paulo Leminski, Frank O’Hara, Roberto Bolaño Juan Pablo Villa-Lobos, Bukowski, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Jim Dodge, Henry Miller e muitos outros etc. Balaio doido. Mas há sempre espaço pra gratas surpresas – até porque sem isso a vida perde a graça -, o que levou ao meu mais recente apaixonamento, um autor contemporâneo, que me desviou o eixo, invertendo os polos magnéticos. Um novo encontro. Verdadeiramente especial. Porque fazia tempo que um livro não “batia” dessa forma. Foi assim: em abril de 2018 fui a Lisboa comemorar meu aniversário e recebi a encomenda de dois livros de dois autores portugueses, que não se achavam em terras brasileiras. Com o primeiro não tive sucesso, por isso nem lhe lembro o nome. Já o segundo, encontrado após alguma procura, foi Quando as girafas baixam o pescoço , de Sandro William Junqueira . De cara curti o título, mas não me aventurei em seus interiores. Estando lá durante dez dias, em dado momento não teve jeito: comecei a folheá-lo. E o fato é que não consegui mais parar de ler. Espanto e estupefação imediatos. Tinha achado uma coisa especial, uma pepita de ouro, alguém que falava uma língua desconhecida que há muito eu queria conhecer, mesmo sem o saber. O resultado foi que o livro voltou pro Brasil, foi lido mais uma vez e levou 6 meses pra chegar nas mãos do amigo que o tinha encomendado. Não conseguia me separar dele. A partir daí e diferente de todos os outros encantamentos literários pregressos, senti a necessidade de ler todos os romances publicados pelo autor: além do meu preferido “Quando as girafas baixam o pescoço” (Editora Caminho/2017), “No céu não há limões” (Editora Caminho/2014), “Um piano para cavalos altos” (Leya Brasil/2014), “O caderno do algoz” (Editora Caminho/2012) e, adicionado à lista, o único não romance, o récem publicado infantojuvenil “As palavras que fugiram do dicionário” (Editora Caminho, acaba de ganhar o prêmio Autores SPA 2019 da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Livro Infanto-Juvenil), tão poético quanto a suposta classificação etária. Uma fome de autor, isso é o que o Sandro me deu. Porque só Sandro escreve como o Sandro. Nessa busca consegui ser presenteada com dois títulos pelo próprio amigo que tinha encomendado o primeiro livro, e por conseguinte me apresentado o autor, e os outros mandei buscar na “terrinha”, inclusive um novo exemplar das “Girafas”, pra que fosse só meu e pudesse carregar comigo a meu bel prazer, como um pedaço de mim. A nota é que continuo o lendo, junto com outras leituras, mas sempre voltando àquela fonte, uma forma de sorver mais profundamente aquele olhar sobre a vida com o qual tanto me identifiquei. A vontade é pedir: não pare de escrever. E não penso que ele vá parar. Da nova safra de contemporâneos que vieram pra ficar, Sandro ainda é novo, nasceu em 1974 em Umtali, na antiga Rodésia (uma país que sequer existiu, nada mais poético) e hoje vive em Portugal. É escritor, encenador, professor de expressão dramática e autor de vários projetos de promoção de livros e da leitura. Das coisas que me encantaram: os títulos, o conteúdo, mais do que cabe em si, e o estilo. A prosa poética, única, a mais bem encaixada que já li, prosaica. As construções livres, ousadas e simplesmente encantadoras que deslocam determinadas palavras, agregando uma nova vida, um novo ângulo de sentir. As partes que compõe um todo, mas podem ser lidas de forma independente. A voz, singular, em afinação com um coração que bate o ritmo da vida, compassando as imagens poéticas com os dilemas humanos, demasiadamente humanos de todos nós. Tudo isso temperado pelo português de Portugal, o mesmo idioma que o nosso, porém revelador em seu jeito de expressar, trazendo construções, ritmo, imagens e música que só se fala e escreve por lá, e que influi sutilmente na percepção de mundo. Fotos de Adriana Nolasco É difícil por em palavras esse tipo de magia, mas é possivel tentar, segredo- coisa que só quem tramou a trama traz em seus órgãos internos. Um tecido vivo que não é possível imitar. Sou uma escritora tímida, que custa a enxergar valor no que faço, mas Sandro me deu isso, a vontade de soltar uma voz própria, empapada de meu próprio suor, cheiro, textura, coragem. Por fim, não poderia deixar de mencionar uma particularidade marcante: a relação do autor/obra com a música, um quase segredo, um pequeno detalhe, uma nova camada sinestésica que chega como um bônus, uma surpresa a mais após todas as surpresas. Cada romance, em pedaços diferentes, remete concretamente a uma ou mais canções, seja em citações, em nomes de capítulos ou em indicações precisas. Músicas como Too Many Birds, do album Sometimes I Wish I Were an Eagle, de Bill Callahan, As Gymnopédies, de Erik Satie, e outras que não vou mencionar porque fazem parte da descoberta, pra que se somem ao texto. Sobre essa singularidade Sandro falou numa entrevista: “William Faulkner disse que os escritores queriam era ser compositores, mas como não tinham talento… A música é a maior de todas as artes e aquela que nos aproxima mais da eternidade. Todos os meus livros têm uma música no fim.Tenho paixão pelo piano e pelos pianistas. Sempre que vejo um pianista a tocar emociono-me. Eu gostava muito de ser pianista, mas não tenho talento. Tento fazer com as palavras o que os músicos fazem com as notas. Tento atingir a universalidade e emocionar as pessoas. Muito facilmente a música consegue pôr-te a chorar, a rir, a mexer o corpo, a viajar no tempo. É mais difícil que um livro consiga fazer chorar um leitor.” Pois que Sandro escreve como música e pode tranquilamente te(me) fazer chorar. E como nada é por acaso, enquanto escrevia esse texto, abri aleatoriamente as páginas de Quando as girafas baixam o pescoço e revelou-se para mim justamente um capítulo chamado Ler, que reproduzo aqui como uma última provocação: Ler Ema está de costas voltadas, de avental posto, junto do lava-loiça.Ao jantar apenas o som dos garfos e facas tinha interrompido o silêncio.Ele, o Homem Que Gosta de Livros, sentado à mesa, vigia-lhe: a nuca, a barriga das pernas, o movimento dos braços. Esconde, debaixo da camisa abotoada até o colarinho, um livro. Uma frase: “Viver é viver como viveríamos se vivêssemos.” Essa frase não lhe larga o peito. Ele gostaria de desabotoar a camisa, abrir o livro. Ler o coração em voz alta. Se ao menos Ema o compreendesse. Se ao menos Ema o ouvisse.Ele queria ler-lhe, para assim poder tocá-la. Há outras formas de tocar em alguém? Sandro ainda não tem sua obra completa publicada no Brasil, exceção para “Um piano para cavalos altos” e foi graças a um golpe de sorte que pude conhecê-lo, o que me faz pensar em quantas maravilhas não deixamos de ter ao nosso alcance. Coisas do nosso mercado editorial, mas isso é outro papo. Livro é semente que se deve espalhar. Texto e todas as fotos de Adriana Nolasco adriana nolasco escapou da medicina, com sofreguidão. tem uma produtora carambolas -, muito prima de coletivos poéticos de cunho anárquico. entre outros planos, faz filmes, cometendo em quase todas as funções, com especial apego à fornalha. além, cutuca as letras e seus avessos, muitas vezes com vertigem no céu da boca. adestra sombras em conluio com a sorte e garimpa flores com a mesma astúcia que encontra esbarrões. já lavou calçadas, especulou em bolsas obtusas, traficou marfim em continentes distantes. atualmente, pensa em não pensar, com muita dificuldade. adriana publicou em 2018 o livro Até quase perto, pela editora Urutau. A AfetoCrônicaLeituraLivroMemóriaMúsicaPortugalSandro William Junqueira