Lucia Berlin, te amo

Com você a primeira colaboração do caríssimo Terêncio Porto, esritor, poeta, artista audiovisual, que chega na lagoa serena do Kuruma’tá revirando as águas e trazendo à tona a escritora norteamericana Lucia Berlin. Bem-vindo, Terêncio!

Toinho Castro (Editor)

Texto de Terêncio Porto


Oaxaca, México, 1964

Lendo o “Manual da Faxineira”, da Lucia Berlin. Todo dia penso em postar “Lucia Berlin, te amo.” Todo dia, desde o meu aniversário, um estarrecimento. Nunca li nada igual. Claro que se pode falar isso de muitos autores, mas essa daí tá me tirando do sério, no melhor dos sentidos. O livro, de contos, tem pouco mais de 500 páginas. Pouca gente sabe quem é ela, a Lucia, isso tendo em vista que ela – mais um hit póstumo desse mercado macabro que é o literário, o verdadeiro exército dos White Walkers – entrou em moda recentemente. Foi descoberta. Estou já na reta final do livro e, depois de tanto conto que me deixou profundamente mexido de um jeito diferente etc (fiquei aqui buscando uma palavra, já tinha usado “estarrecimento”, então “estarrecido”, que seria a escolha natural, não dava pé, ia meter um “boquiaberto”, soou muito empolado, fiquei com isso aí mesmo), a maioria abertamente autobiográfico, agora parece que Lucia meteu uma quarta marcha na saída da curva e emendou 3 contos seguidos, a saber, “Carmen”, “Silêncio” e “Mijito”, que simplesmente foram as 3 paradas mais brutais que eu já li na minha vida.

Não sou um grande leitor de contos, mas, apesar disso, um dos meus dois livros de cabeceira é de contos, e na verdade ele é uma pequena coleção de livros de contos, o “Contos Reunidos”, do Rubem Fonseca, uma soma quase total de tudo que ele havia publicado até o começo dos anos 90, ou seja, ouro puro, e na ordem certa. Dá pra ver a musculatura se desenvolvendo (só lia ele fora de ordem, só recentemente reli na ordem natural, pra constatar isso, sendo que o mais forte não é necessariamente o mais bonito). Acho que ele pediu pra excluir um conto, por isso é quase total, mas não importa. Eles são bem conhecidos, consagrados como pérolas, todas MUITO brutais, tanto na forma como no conteúdo, sintonia perfeita entre as partes. Se é pra usar uma palavra só, tem que ser essa: brutal. Porque violento pacas, bem como certeiro. Se vem em tom maior ou menor, não importa, sempre cutuca as vísceras.

Bom, o fato é que Lucia já tinha me surpreendido com uma infância que incluiu arrancar os dentes remanescentes do avô dentista pra que ele pudesse usar sua nova dentadura, ocasião na qual se ele desmaiasse de dor era melhor pra todo mundo, já tinha me surpreendido com um mal fadado aborto clandestino na fronteira México – EUA, anos 50, me surpreendido com o maior suspense e as maiores vibrações do ponto de vista de uma mulher linda e terna, fracassada, traumatizada, marginal, sobrevivente, querendo viver, se debatendo, querendo viver, sem parar. Histórias e memórias sobrepostas como uma pilha de panquecas depois de um terremoto, overlaps de intimidades e cacos de enredos biográficos que se repetem fragmentadamente, e que fazem muito mais e maior sentido como teia de emoções, isso sem tirar nem um pouco o mérito da prosa seca e precisa demais, além das tramas de tirar o fôlego etc, muito pelo contrário, um lance iluminando o outro, sem parar.

“Joe disse que era afetado e falso, que eu só devia escrever sobre o que eu sinto, não inventar uma coisa sobre um velho que eu nunca conheci. Eu não me importo com o que eles disseram. Li o conto centenas de vezes.

Claro que me importo.”

“Perguntei a Kentshereve como ele achava que era. Ele levantou a mão e a encostou na minha, de modo que todos os nossos dedos se tocassem, depois me falou para passar o polegar e o indicador pelos nossos dedos que estavam encostados. Não dá para saber qual é qual. Deve ser algo assim, disse ele.”

“Nunca ocorre a ninguém que, tendo vivido no Chile, é natural que eu goste de um latino, alguém que sente as coisas.”

Mas aí chegaram esses 3 contos e colocaram a coisa em um patamar ainda acima, aquela estante inalcançável da casa do seu avô, onde ficava guardada alguma coisa tão especial que você não conseguia nem imaginar o que era. Fizeram o Rubem Fonseca, no seu melhor, parecer light. Isso mesmo. Rubem Fonseca top, bolacha de arroz; Lucia Berlin no “Manual da faxineira”, porquinho a pururuca. Foi duro enfrentar esses contos. E tinha tido um, um pouco antes, se não me engano o anterior ao anterior, “Quero ver aquele seu sorriso”, que tinha sido uma obra prima, estruturado de maneira maior e mais possante que os primeiros da fila, inclusive com um plot em que uma das partes tem um puta sotaque Chandleriano, sendo que praticamente tudo antes era perfeito, então vá explicar, só lendo mesmo. É inacreditável. Toda vez que o mercado descobre uma autora ou um autor postumamente, revelando-a como dinamite pura, muito melhor que 99% de tudo que é publicado, eu penso: “Filhos da puta, não são vocês quem escolhem, são vocês que excluem”.

Obrigado, Lucia, te amo.


Lucia, Jeff e Mark, Acapulco, 1961.
Foto: Buddy Berlin

Credor lunático e lavrador quixotesco, Terêncio Porto comete em conluio com sua sombra artimanhas dotadas de asas. Constrói sendas em paragens antigas e cria runas, as quais pastoreia com suas 4 gatas de sol a sol, até que só restem gêiseres de solidões abruptas e sem step.

Terêncio acaba de lançar seu primeiro livro de poesias. No bolso do peito uma bússola quebrada foi lançado pela Editora Viés e pode ser adquirido clicando aqui!

Fotos: ©2018 Literary Estate of Lucia Berlin LP