HQs e poesia na Paraíba dos anos 80

Texto de Aderaldo Luciano


Estava tentando escrever um trabalho crítico sobre Piteco-Ingá, edição de luxo de Shiko a partir do clássico personagem de Maurício de Souza. Fui revolver minha pequena dúzia de livros para ver se encontrava alguma luz norteadora. Elenquei: Alex Ross, Will Eisner, Moaci Cirne, Álvaro de Moya, Goida, Pierre Couperie, Maurice Horn, Umberto Eco e um bocado de coisa. Sou um aficionado da banda desenhada e um observador. Não sou um estudioso, embora tenha me metido com Joe Sacco e Marjane Satrapi, Hal Foster e Alex Raymond. Mas o melhor de tudo é que, entre eles, ali na quina da estante, escondidinho como um vagalume de dia, estava A Incrível História Dos Quadrinhos – 20 Anos De HQ Da Paraíba, de Henrique Magalhães.

Uma produção da Marca de Fantasia, da Acacia e Sancho Pança, saída em 1983, merecia, por parte da intelectualidade paraibana, uma comemoração. Reli-o imediatamente, rindo e aprendendo, relembrando que o encontrei, por incrível que pareça, num sebo no Rio de Janeiro. Além de historiografar, Henrique Magalhães consegue arejar nossa cabeça e nos alerta para o elemento mais arrojado do autor de quadrinhos: a persistência. Em suas páginas reencontramos, no passado, os amigos do presente. Heróis nascidos da pena e da caneta e da ousadia oferecem aos de hoje a possibilidade de trilhar um caminho de certa forma mais leve. Nesse ponto foi me afastando do que me levara até ele, agora.

Outro dia, Bráulio Tavares citava o Flama, personagem de Deodato Borges. Um caso no qual o personagem saiu de um programa da Rádio Borborema de Campina Grande direto para o papel em As Aventura Do Flama. O herói campinense, vestindo o mesmo colant, a capa e aquela máscara mínima foi um sucesso que durou 5 números. Consegui, num desses milagres, encontrar um número lá no Cata-Livros, sebo na rodoviária velha, nem sei mais como, já na década de 80, que perdeu-se nessas minhas viagens. Por outro lado, Welta, de Emir Ribeiro, aquela heroína gostosona, era a mulher que todos nós, adolescentes, gostaríamos de encontrar. E nós a encontramos pela primeira vez num suplemento da revista da FUNESC, chamado Leve Metal, se não me engano.

Henrique Magalhães, nesse seu trabalho, faz o inventário desses episódios: entre suplementos e heróis e tiras e autores. Fiquei ainda mais feliz porque revi a inesquecível Maria, personagem solteirona, muitas vezes ácida, outras ingênua, outras sonhadora, de quem eu gostava com todo o afeto porque era a cara de minha tia Joana. Para quem quer ter um olhar sobre as origens de nossas HQs paraibanas é um ótimo encontro. Nesses momentos medonhos e decisivos nos quais o jornalismo paraibano, a “imprenÇa”, como escreveria Japiassu, se meteu, parece que há uma tênue luz de dignidade, vinda do passado.

Agora a Carro de Boi: quando começaram os anos 80, nós, adolescentes que pensávamos em poesia no interior da Paraíba, não conhecíamos os autores paraibanos. Desconhecíamos o movimento Sanhauhá e sabíamos muito pouco do Jaguaribe Carne. Conhecíamos mais o cinema documental com as figuras de Wladimir de Carvalho, Linduarte Noronha, Machado Bittencourt, João Ramiro Neto e Ipojuca Pontes.

A pequena cidade de Areia, na região do Brejo, abrigava por essa época o seu Festival de Artes, reunindo peregrinos das artes de todo o Brasil. No ano de 82, chegava às nossas mãos alguns livros produzidos pelo Governo do Estado, sob o comando de Tarcísio Burity. A antologia Carro de Boi – a nova poesia paraibana, organizada por Juca Pontes, publicada no ano anterior, foi a primeira carta de orientação para nós.

Nela, estavam os novos. Aqueles que faziam a poesia na Paraíba. E nós, que nos julgávamos os novos, chegáramos a conclusão de que não éramos nada. A Carro de Boi, todavia, não trazia autores interioranos, os que como eu, morávamos no interior. Estava recheada de autores radicados na capital ou em Campina Grande (que não era bem o interior)a mais importante cidade paraibana naquele momento. Não havia a política de interiorização das ações culturais e tudo rumava para o litoral. O Festival de Artes de Areia era uma excessão política.

A Carro de Boi foi importantíssima mesmo assim. Lembro-me de ficar discutindo com os colegas quem era o melhor poeta, se Saulo Mendonça ou José Leite Guerra. Figuravam na antologia dois nomes que seriam conhecidos nacionalmente: Zé Ramalho, cujo Apocalypse estava reproduzido quase na íntegra, ou mesmo na íntegra, e que viria a se transformar em sucessos musicais com os nomes de Canção Agalopada e Beira Mar, Beira Mar Capítulo II e Beira Mar Capítulo Final. E Braulio Tavares, com Caldeirão dos Mitos, gravada depois por Elba Ramalho.

Eulajosé Dias de Araújo, Águia Mendes, Políbio Alves, Jomar Souto, Aldo Lopes, Marcos Agra, Marcos Tavares, Arland de Souza Lopes, José Antonio Assunção e o próprio organizador Juca Pontes formavam o time representante do esquadrão poético paraibano. Outro, Sérgio de Castro Pinto, terminou por se transformar em nome de referência por seu engajamento poético e crítico, professor da Universidade Federal da Paraíba. Mas foi a Carro de Boi que o levou para o interior.

A Carro de Boi trazia uma epígrafe de Lúcio Lins, poeta que se solidificaria na década de 90, morto em 2005, que reproduzimos como ágora, ao redor da qual elevaram-se os edifícios:

bordam-se palavras
que calam as rendeiras
quando em seu ofício


depois de finda a renda
vestem-se os poemas
em vários exercícios.

(Lúcio Lins – Dois Movimentos)