Desconstrução do Conselheiro

Kuruma’tá traz até você a colaboração do parceiro, professor e poeta Nonato Gurgel. No texto inédito, o monólogo interior de Antonio Conselheiro, seus sonhos, memórias e viagens pelo tempo/espaço dos sertões da Bahia.

Texto de Nonato Gurgel


Sertões da Bahia, 1897
Enquanto as tropas não chegam


I

Desde Quixeramobim, no Ceará, nunca saí do Nordeste. Banhado pelo Vaza Barris, fui ficando pelos sertões de Canudos. Estoquei ventos, silêncios, palavras, fui ficando luz e sombra, fui virando louco e lenda, virei o Bom Jesus que eu não era quando o meu bem foi embora.

II

Deserdei pelo avesso. Peregrino do meio dia, fiz prédicas, comício aos bichos, pregações às pedras, aos córregos, passeios sob o sol pelas veredas sem fim. Prosas do fim da noite no chão de barro batido, conversas infindas no calor da hora, à luz do lampião na sala de reboco. Imagens e sinos do Belo Monte repicam no meu peito. Na verdade, repicam no meu corpo inteiro. Em sonhos que são Deus, trago nos olhos os templos repletos de rostos e sombras, Ana Bom Jesus, Beatinho, Benta, Pajeú, Leão de Natuba, tantos outros. Outros folheiam páginas, paisagens, lírios do campo, os bichos, as Horas Marianas. Não sou nada e nada tenho, além dos sonhos e do Breviário que não paro de escrever, os apontamentos, sermões.

III

Enquanto as tropas não chegam, ouço aboios, ouço urros e berros, zumbidos, miados, cacarejos e pios ouço, ouço o estouro da boiada, o relógio da saudade. Do verde inverno gotejante, telhas, goteiras, capelas, igrejas que construímos juntos, cisternas, campos de futebol, rezas inventadas no solo seco do sertão sem ser só. Os beatos não são fanáticos, ah não são. Têm ouvido treinado e saudades de Sebastião, o santo, o rei louco, ‘sim, louco, porque quis grandeza’. Escutam feito prece a chuva, os ventos do fim do dia. Avisados dos pecados republicanos, advinham os impostos, a mudança das estações, o silvo alado, o voo do vem vem que benze, a casca da serpente, a guerra do fim do mundo. Advinham também a escrita do futuro, Canudos todo por fazer, meu Deus, eles vão me degolar, como degolaram Zumbi, como degolarão Lampião, Gumercindo e tantos outros nessa história tropical de tropas, golpes e degolas.


Para José Celso Martinez Corrêa que me revelou o Conselheiro.


Texto de Nonato Gurgel

Nonato Gurgel nasceu em Caraúbas-RN, é professor do curso de Letras da UFRRJ e autor de miniSertão (2014), Luvas na Marginália (2016) e Nonada: floração da prosa no sertão (inédito).

Ilustração Toinho Castro, a partir de várias visões de Conselheiro