Texto de Toinho Castro
Não sendo crítico de arte, ou mesmo conhecedor mais dedicado do tema, resta-me falar do maravilhamento diante de uma obra de arte. E é isso que pretendo aqui fazer ao comentar certa obra do pintor paraibano João Câmara.
Entre uma e outra onda
da nossa tempestade
podíamos avistá-la.
Recordo que no Recife, onde hoje é o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM, ali na rua da Aurora, de frente para o Capibaribe e o sol que nasce iluminando a cidade, funcionava a Galeria de Arte Aloísio Magalhães. Era um lugar que eu gostava de visitar, sempre que podia. Lá cheguei a participar de duas coletivas, com desenhos feitos com pastel, cenas urbanas, escuras, quase apocalípticas, bem diferentes da vista que eu tinhas das janelas e sacadas do museu. O rio Capibaribe, moroso, carregando Pernambuco e sua história para tudo se desmanchar no mar.
João Cabral de Melo Neto, no seu Cão sem plumas, fala desse encontro/embate do rio Capibaribe com o mar…
O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Na Aloísio Magalhães, então galeria, havia uma ampla sala dedicada a uma uma série de pinturas do João Câmara chamada Cenas da Vida Brasileira. Essas pinturas sempre me impressionaram e recordo de sempre vagar por elas, apreciando suas dimensões enormes e os detalhes da tinta sobre os painéis enormes, a precisão dos pincéis criando aquelas cenas tão realista mas recheadas de elementos tão inesperados. Eu ficava a reconhecer personagens como Getúlio Vargas e Carlos Lacerda, vivendo de uma maneira muito peculiar, muito minha, a história do Brasil, que ali saía dos livros de modo surpreendente. De um dos cantos, ou da janela, de costas para o Capibaribe, eu costumava contemplar o salão com todos aqueles imensos quadros, como janelas no tempo. E aquilo era obra de uma pessoa. Isso sempre me impressionou e ainda me impressiona.
Nunca mais estive lá mas creio que os quadros ainda façam parte do acervo do Museu, ou se estão expostos. Uma grande experiência apreciá-los. E essa apreciação me levou ao mundo de João Câmara. Anos depois, longe do Recife e num futuro com internet, dei-me a pesquisar por João Câmara. Queria rever as Cenas da vida brasileira, mesmo miúdas no browser. Senti falta daquelas tardes, em alguma tarde em que o Rio de Janeiro me pareceu pouco, ou injusto. Nessas horas, compreensivelmente, eu me voltava para o Recife. Acabei lendo mais sobre João Câmara, seus outros trabalhos, tantos, que eu não conhecia. E cheguei a esse quadro, chamado Passagem Malakoff. Na verdade um díptico, uma composição de dois quadros, ilustrando uma torre que se ergue no porto do Recife. A Torre Malakoff, construída entre 1853 a 1855, como observatório e portão monumental do Arsenal da Marinha, foi assim batizada pelos recifenses, em referência a uma fortaleza de mesmo nome, próxima à cidade de Sebastopol, onde russos e franceses se enfrentaram na Guerra da Criméia, que estava acontecendo e ilustrando os jornais provinciais naqueles mesmo período.
Numa época sem Google, ou sequer internet, pesquisar seu trabalho não era simples mas de alguma forma descobri um dos seus quadros, provavelmente em alguma publicação, que me marcou profundamente; um quadro que nunca tive a oportunidade de ver pessoalmente: O díptico Passagem Malakoff. uma pintura a óleo de sobre madeira e tela, representado a Torre Malaokff, numa vista de quem entra no porto do Recife.
Observar essa tela foi como uma viagem no tempo e um reencontro. Não, não há misticismo nessas palavras, mas o assombramento do viagem artística que saltou na minha mente: Já vi isso, pensei. Tempos depois cheguei mesmo a sonhar com essa cena, em que eu boiava numa pequena embarcação à entrada do porto, vendo a torre iluminada por alguma lua e os faroletes ver de vermelho marcando a passagem para as águas seguras do ancoradouro. Escutava o ruído da água batendo no casco de madeira do barco e a talvez os ruídos da cidade logo ali adiante. Mas até hoje não sei se, no sonho, eu estava chegando ou partindo do Recife. Mas a imagem da torre Malakoff, nos termos que João Câmara pintou, era agora minha. Há nela algo mesmo de sonho e talvez esse fio onírico tenha nos conectado.
Como afirmar se sonhei o que ele pintou ou se ele pintou o que eu sonharia?
Quando visito o Recife procuro sempre ver a torre, que foi erguida como parte do Portão Monumental do arsenal da Marinha e também observatório. Hoje é um espaço cultural, onde são promovidas exposições e outros encontros. Nunca subi ao seu terraço, para ver do alto a cidade que eu ansiava ou abandonava no meu sonho. Tenho uma velha fotografia, provavelmente dos anos 1920, que traz essa vista ensolarada de um Recife que já não existe. Sem dúvida uma foto que foi tirada do alto da torre.
Da última vez que visitei a cidade atravessei para o molhe que protege o porto, onde fica o parque de esculturas de Francisco Brennand. De lá vi a torre, pequena, sem a monumentalidade do sonho ou da pintura. Ainda assim meu coração vibrou com aquele marco, parecendo solitário sobre a planície aluvial sobre a qual Recife cresceu. Solitário como eu, ali no molhe entre o porto e o Atlântico.
Recomendo fortemente aproveitar os link nesse texto para conhecer o trabalho de João Câmara, especialmente as séries Cenas da vida brasileira e Duas cidades, da qual a Passagem Malakoff faz parte.
Texto de Toinho Castro
Linda visão de uma quadro, de um Recife, das suas imagens e sonhos. Grande Antônio Castro, bravo Toinho
Muito obrigado, Amândio!!! Estamos juntos nos sonhos e visões!