Cidade do caos | Parte II

Noveleta de Octavio Aragão


Maria Luíza passou a noite em claro e agora dormitava no trem, a caminho do trabalho. O tiroteio tinha durado umas três horas, mas foi o suficiente para deixar os nervos despedaçados e espantar qualquer possibilidade de sono. Os vizinho diziam que era uma caçada a criminosos, alguma coisa assim, como no tempo em que o Cabeça de Cavalo assombrava os morros, dando trabalho para os policiais. Agora os bandidos eram outros, uns tais que a patroa chamava de comunistas e que ela não entendia bem o que faziam.
– Ah, eles são um terror – dizia dona Melissa, que preferia ser chamada de “dona Mel”, do alto de seus sapatos – Assaltam bancos, querem tirar nossas casas. Dizem que, quando não têm comida, devoram crianças pequenas. E esses monstros querem derrubar o governo.
– Que horror! E por que o governo deixa essas pessoas existirem, dona Mel?
– Como assim, Maria? O governo não pode exterminar pessoas como se fossem baratas, por mais nojentas que sejam. Afinal, vivemos numa democracia.
Maria Luiza não sabia bem o que era democracia, mas pensava que devia ser uma coisa muito boa. De qualquer maneira, comer crianças pequenas… Se a polícia estava caçando essas baratas humanas, então o tiroteio era um mal necessário e, quando dormiu embalada pelo sacolejar do vagão, o sonho foi um arremedo de filme de terror, com baratas gigantes encurralando a ela e aos filhos no canto do barraco até que um policial parecido com os que o marido assistia na televisão matava os bichos. Onde andava o marido nessas horas ela não sabia dizer, mas o sonho acabou ao som do apito do trem, avisando a chegada à Central do Brasil.
A esquisitice começou na saída da estação do Maracanã, quando a multidão foi parada por um bloqueio policial.
“Não parecem com o moço com o qual sonhei”, pensou Maria Luiza, que tentou passar pelo homens suarentos, barrigudos e mal encarados vestidos com a farda azul da Polícia Militar.
– Não dá para passar, não, moça – disse um brucutu.
– Mas como assim? Preciso trabalhar!
Um rapaz de seus vinte anos, irritado com o impedimento, gritou.
– Uns comunistas fizeram baderna e a gente é que paga? Quem vai explicar ao meu patrão que cheguei atrasado?
Diante do cassetete do policial, o moço achou por bem guardar sua indignação na garganta, mas Maria Luiza fechou a cara em desaprovação. Como assim, uns comedores de criancinhas fazem o que bem entendem e prejudicam pessoas de bem? Não, ela iria passar e ninguém a deteria.
Deu um jeito de circundar o quarteirão, tomando distância do cerco que se estendia por três ruas, visivelmente preocupado apenas com quem desembarcava do trem, como se as pessoas não pudessem chegar por outros caminhos. Com sorte, perderia apenas uns dez minutos, conseguiria chegar incólume à Rua São Francisco Xavier e ainda passar na padaria a tempo de levar uns pães fresquinhos para dona Melissa. Vai que ela adiantaria umas rabanadas para o Natal, na quinta-feira.
Foi na saída da padaria que viu a aglomeração perto do rio Maracanã. Um menino de olhos arregalados passou correndo, quase esbarrando nela.
– Os defuntos, tia, os defuntos no rio!
Num misto de curiosidade e caridade, abraçando as bisnagas como se fossem seus filhos, Maria Luiza se aproximou do grupo. Sofreu algumas cotoveladas, mas conseguiu chegar à margem do rio. O que viu ali ficaria com ela para sempre em seus pesadelos, até a noite em que morreria cercada pelos netos ainda não nascidos, num casebre não muito maior que aquele que habitava.
O mais assustador eram os ossos escuros, despontando da carne vermelha, rasgada pelo que pareciam golpes de um facão. Um emaranhado de carne que com certeza eram os restos mortais de três pessoas de sexo indefinido, circundados por arames farpados, cordas e panos nos quais Maria Luiza reconhecia restos de roupas. Pessoas que pareciam mastigadas, moídas, boiando meio submersas entre os dejetos de dois bairros da Zona Norte. E aquele cheiro…
Um homem com um microfone aproximou-se dela. Devia ser um repórter da televisão.
– Senhora, por favor, poderia nos dizer o que acha que aconteceu aqui? Olhando para a câmera, está bem?
Maria Luiza, sentiu-se tomada por uma força maior. Cabia a ela falar para o Brasil o que estava acontecendo naquele bairro chique, onde coisas horrendas não deveriam aflorar.
– Foram os comunistas. Eles mataram as pobres crianças. Comeram pedaços delas e jogaram os restos no rio. Foi esta noite. Eu ouvi os tiros. Meu Deus, as crianças…
E Maria Luiza foi tomada por um acesso de choro convulsivo, afagando as bisnagas, apertando-as ao ponto de partir uma ao meio. Não lhe ocorreu que os tiros que ouvira na noite anterior foram disparados na Zona Oeste.

Crédito da imagem: Montagem feita a partir de foto de Rodrigo Soldon
Fonte: Wikipédia


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