Será?

Uma voz nova chegando na Revista Kuruma’tá! Enquanto participávamos do atentamente do Festival Levada recebemos essa mensagem, perguntando se tínhamos espaço para uns textos… e sim, tínhamos. E temos. E assim Laura Limp, atriz, feminista, mãe de três, poeta, letrista, performer, fotógrafa, diretora, tradutora e inquieta. Sim, tudo isso e ainda mais. Quem chega na Kuruma’tá é sempre múltiplo! Detalhe, Laura estava trabalhando com o Levada e foi assim que as pontes se deram!

E aqui está seu primeiro texto carregado de poesia, lírico e onírico e desafiador. Bem-vinda, Laura!

Toinho Castro (Editor)

Texto de Laura Limp


e a feira começando seu monta-monta colorido. e o dia ameaçando chegar mas não chegando. e o vento fazendo as folhas fofoqueiras e amareladas das copas largas das árvores conversarem comigo. e eu lá, meio fingindo que não escutando, mas meio sabendo do que falavam. e essa vontade de sair correndo até que os pés desistam do solo.

e todos os detalhes da minha antiga rua (que é caminho pra sua casa) subitamente tão diferentes. e tudo de estranho nesse trajeto que faço agora, à contra gosto, de volta pra minha casa, ferindo meus  olhos. como a santa na portaria do prédio que eu sabia de cor, porque queria habitar como planta as varandas dele. como o formato de rosto na parede descascada do outro prédio de esquina ou aquela pomba amassada na calçada e ainda viva, sofrendo em silêncio, perto do meio fio partido. e tem também aquele fusca cor de barbante estacionado que nunca saiu de lá e não vai sair porque eu proíbo.

tudo que fazia aquela rua me ser conhecida e ser trajeto (e de um jeito meio bobo ser também afeto) vai virando do avesso, como minhas veias-galhos sufocando os músculos cansados daquela dança estúpida que teimamos em não dançar.

e agora, esse disparar de corpo que não quer ir e não quer voltar. essa adrenalina de dentes. essa coisa fósforo acesso na mente e entre as pernas colorindo o rosto de vermelho. essas perguntas todas, como gigantes cães de algodão, flutuando e ganindo baixinho. ignorando a rua que está num abandono de dar nó no peito e na garganta. ignorando o perigo do grito que não terá ouvidos.

mas depois de tudo pelo avesso e tomando vento e tomando vento e ardendo e retendo poeira e ardendo mais, nada mais assusta. é translúcida a  vontade de sair caminhando assim, num trajeto de flecha torta.  o rosto contorcido e perplexo, antecipando o rio que chega, desgovernado feito tromba d’água, e não poder (ou querer) fazer nada além de deixar que ele siga seu curso como sigo o meu.

sair caminhando, roçando a sola do all star encardido no concreto-tinta-sujeira-cocô-e-pó e sentir a eletricidade dos cabos de alta tensão nos cabelos soltos e o calor do vento atravessando o peito de chuva que vai chegar. enquanto isso, observar os pássaros, que talvez sobrevoem a minha imaginação sonhando, em pleno vôo, com os dias esverdeados de mar.

saí de entre travesseiros e olhares-esfinge com vontade de ficar mais e me dissolver entre as estampas feias do teu lençol e a cor morena da tua pele. para que nunca mais sentisse essa coisa que é partir sem saber de nada, nem de si. para que desaparecesse, como quem nunca esteve caminhando por aí, quase entendendo as coisas. para que desfraguimentasse minhas partículas-memórias em esquecimento líquido e selvagem até ser capaz de, novamente, frequentar aquela feira e seus ruídos sem estremecer com a vontade que me arrasta o espírito, contrariado, até a sua porta. só para juntar os seus caquinhos de mal-entendidos idiotas.

tudo isso porque, um dia, alguém te disse que a gente não era possível. meu amor, te canto como Marina: “pátrias, famílias, religiões e preconceitos. quebrou não tem mais jeito não.”

Imagens de Laura Limp