Cidade do caos | Parte III

Noveleta de Octavio Aragão


No aparelho na rua Uruguai, Lara, codinome Adriana, esperava. Três meses e nenhuma notícia de Joel, codinome Eduardo, que havia partido para a Bahia e nunca mais voltou. O Partido não sabia do paradeiro de Eduardo (era importante pensar nele assim, como “Eduardo”, como uma ficção), mas recomendou que ficasse quieta, escondida, pois as paredes tinham olhos, ouvidos e até línguas. Dormir era um luxo ao qual não se permitia desde que o grande líder José Arruela foi executado a tiros dentro de um cinema, logo ali, na Praça Saens Peña, assistindo a um desenho animado. Num momento ouvindo a Cinderela, no outro, varado a bala.
Às sete da manhã, Lara (não, Adriana!) mastigava um pão velho, longe da janela, da qual não se aproximava, quando ouviu a gritaria. Seguiu as regras de segurança, pegou o 38, enfiou-se debaixo da escrivaninha de madeira reforçada e aguardou as bombas de fumaça. Mas não fazia sentido. Não poderiam saber que ela estava ali. Resolveu esperar, sem permitir que a paranóia, essa velha companheira, a dominasse. Afinal, a pessoa perfeita para o paraíso que viria depois da Revolução não poderia ser assim, descontrolada. Teria de ser forte para guiar as massas, os infelizes dominados pela ditadura capitalista, incapazes de pensar por si mesmos.
Esperou acocorada, protegida. Acalmou-se pensando no futuro, num amanhã glorioso que não tardaria, ela ao lado de Joel – não, Eduardo – livres, sob o sol da democracia popular, todos iguais, irmanados pelo país e, depois, pelo mundo. Adormeceu, sonhando com o jardim perfeito, um céu límpido e uma sirene horrível.
Deu com a cabeça no fundo da escrivaninha. Sirenes. A esta hora. Só podia ser uma coisa. Os malditos a tinham descoberto, mas não queriam dar chance de fuga ou resistência. Usavam as sirenes para espantar o povo, liberar a área, como se o prédio dela estivesse em chamas. Desgraçados, desgraçados, desgraçados. Mas não seria fácil. Ela não cairia nas mãos desses covardes.
Agachada e longe da janela, esticou a mão para o capote largo que deixava sempre na cadeira da escrivaninha, pronto para qualquer eventualidade. Na bolsa, uma peruca loura e óculos escuros. Calçou um par de tênis leves, para o caso de precisar sair correndo, e meteu o 38 no bolso do casacão. Achava que assim estaria irreconhecível. O fato de fazer um calor de rachar parecia irrelevante.
Sempre agachada, esticou a mão e abriu a porta dos fundos do apartamento. Esgueirou-se, rezando para nenhum vizinho vê-la (pois caso acontecesse, teria de matar, tudo em prol da Revolução). Saiu pela garagem, que dava para a rua Pontes Correa, e caminhou para a Maxwell, de onde poderia, com sorte, pegar um táxi até o Comando Central, no Méier, e informar ao Partido que tinha sido descoberta.
Na esquina da Maxwell, deu de cara com uma viatura policial e recuou, mantendo o revólver na mão, escondido no bolso. Lembrou do quartel do 1º Batalhão da Polícia Militar, na Rua Barão de Mesquita. O Partido achou que seria uma boa ideia manter um aparelho por ali exatamente por ser próximo dos inimigos. “Eles jamais procurariam tão perto”, foi o que disseram, porque, claro, todos os militares eram burros como portas. Agora, ela estava encurralada.
O que Jo… Eduardo faria? Tentaria criar uma bagunça com um rifle de precisão, mas ela não era boa de mira. Sua especialidade eram explosivos e, nesse caso, de nada adiantaria uma bomba.
E então, do nada, um táxi. Do outro lado das pistas duplas da Maxwell, mas, com sorte e uma boa corrida, com certeza chegaria lá, se jogaria dentro do carro e partiria na direção contrária ao fluxo. Rumo à salvação. Não havia escolha, tinha de ser já. Em três passos estava na pista, mais cinco e pegaria o carro, que já estava engatando a primeira. Lara, Adriana ou seja lá quem ela fosse naquele momento acelerou a corrida.
Mas o carro, um velho DKW, já ia longe. Ela xingou e correu, desvairada, uma mulher de casaco, peruca loura e óculos escuros, numa manhã de segunda-feira ensolarada, berrando palavrões atrás de um táxi no meio da rua. Um homem muito sujo, talvez um mendigo, vendo a cena, apiedou-se dela e fez sinal ao carro, que parou. Laradriana agradeceu à boa sorte, mas infelizmente o casaco, com um peso no bolso, desequilibrou a corrida, fazendo com que sua perna direita batesse no pé esquerdo. A mulher resvalou na calçada, e correu por alguns metros buscando manter-se de pé, mas foi impossível. Lara, sim, Lara, estatelou-se no chão e o revólver saiu do bolso, girando pela calçada.
O homem que parou o táxi correu para ajudá-la, mas congelou ao ver a arma. Ela levantou-se como pôde, apanhou o revólver e ainda tentou pegar o táxi, mas dessa vez não houve milagre. O motorista, antevendo problemas com mulheres armadas e mendigos fedorentos, acelerou e desapareceu. O homem imundo esticou o braço, tentou falar alguma coisa em um tom de voz ameno, mas Lara estava surda. Com o cotovelo machucado, ela se ateve à programação: “sem testemunhas”.
Levantou a arma e disparou. Para alguém ruim de mira e com o braço ferido, o tiro foi certeiro. O homem imundo caiu morto com uma bala na testa.
O som do disparo atraiu a atenção de um grupo de pessoas que vinha do rio Maracanã e logo um deles, Lara não sabia qual, mas pela voz aguda deveria ser uma mulher, gritou:
– Aquela loura atirou no homem! Deve ter sido ela quem matou as crianças!
Sem largar a arma, Lara desembestou pela Maxwell, fugindo do grupo. Ficava se perguntando quem seriam as crianças mortas e o que tanta gente estava fazendo na rua, perto do rio. Tinha até um sujeito com uma câmera de filmagem. Não podia ser por causa dela, devia ser alguma coisa no rio e sua intuição a fez se aproximar da margem.
Lá estava resposta. Os malditos fascistas e sua sanha torturadora. Por entre os urubus, estavam corpos mutilados, cortados, desmembrados, e, olhando com cuidado, ela conseguia identificar detalhes. Aquele pano estampado… não era uma camisa com motivos havaianos que ela havia dado ao Joel. Uma representação do Paraíso que viria? E aquele aro de metal preso no que parecia uma mão descarnada seria uma aliança? Seria possível que fosse Joel ali, despedaçado pelos cães militares?
– Solte a arma, moça! – gritou uma voz, talvez de um policial, talvez de um militar, com certeza de um inimigo.
Lara virou atirando. Acertou um, errou três. Foi alvejada quinze vezes e caiu de costas, ao lado do que acreditava ser o corpo de Joel. Morreu feliz, abraçada à carne pútrida.


*Montagem a partir de foto de arquivo pessoal e imagem do Freepik.