Cidade do caos | Parte IV

Hoje chegamos ao capítulo final desse texto inquieto e provocador do caríssimo Octavio Aragão. É o quarto episódio da saga anarcoartística de Carlo Rabbio e você vai querer saber como termina, ou se termina… nesse país em looping.

Octavio, que grande prazer de publicar essa história na Kuruma’tá! Uma história que tá merecendo uma versão em quadrinhos! Olha lá, fica a dica!

Noveleta de Octavio Aragão


O quadro se fechava na boca escancarada da mulher que gritava em silêncio, mas cuja leitura labial permitia ao público entender a frase “Meu Deus, as crianças”. E fim. Cidade do Caos terminava sua primeira exibição sob silêncio absoluto, numa sala de projeção do DOPS.
– Vocês sabem que isso é genial, não é? – disse Carlo Rabbio ao público composto por militares, os chefes do SNI e do DOPS do Rio de Janeiro e mais algumas autoridades, entre elas, um ministro. Nenhuma delas particularmente satisfeita. Gautério Pedro estava quieto e pretendia se manter assim até o fim dos tempos.
Depois de um minuto constrangedor, o governador se manifestou.
– Os senhores tem noção que provocaram, no mínimo, três mortes e uma dezena de feridos, fora o pânico nas ruas por doze horas até a polícia conseguir resolver tudo?– Vai me desculpar, excelência – disse Rabbio, como se falasse com uma criança – mas creio que nós apenas demos voz ao que corrói a população.
– Chega, Carlo – disse Gautério, rompendo a promessa auto-imposta.
– Não sei onde estou que não boto esses subversivos no pau de arara – falou o chefe do DOPS num tom monocórdio.
– Não vamos botar ninguém em pau nenhum – disse o ministro da cultura, limpando os óculos com um lenço de cambraia – Vamos lançar o filme.
Ninguém perguntou “o quê?” em uníssono, mas era óbvio que a pergunta ressoava, inclusive nas cabeças dos autores.
– Em primeiro lugar, – continuou o ministro – o senhor Rabbio tem razão. O filme, em termos artísticos, é bom. Diria até muito bom. A questão é de ponto de vista. Onde os senhores vêem um ataque às instituições governamentais, eu enxergo um alerta contra a iminência de uma invasão comunista. Onde os senhores vêem um povo paranóico, eu enxergo uma população consciente do perigo vermelho. Em segundo lugar, com uma ou duas alterações de montagem aqui e ali, teremos em mãos nosso próprio “O Triunfo da Vontade”, o filme que prova e aprova nosso regime, produzido pelas mãos de dois dos maiores artistas contemporâneos. Lembrem-se, graças à produção desse documentário, eliminamos uma terrorista perigosíssima que procurávamos há anos. Querem melhor carta de apresentação que essa?
Rabbio e Gautério estavam apopléticos, embasbacados, congelados em seus assentos enquanto o ministro continuava.
– Vamos inscrever Cidade do Caos em todos os festivais internacionais. Cannes. Veneza e até Berlim. Não será irônico se ganharmos o Oscar com esse filme? É claro que se nossos gênios das artes plásticas e do cinema se recusarem a reeditar a película em pequenas partes, seremos obrigados a tomar atitudes lamentáveis e suas famílias não saberão de seus paradeiros por, digamos, uns cinquenta anos.
– Por favor, senhores, – disse o chefe do DOPS – recusem.
Eles não recusaram. O filme foi lançado e Cidade do Caos (com o sugestivo subtítulo de “um dia à sombra do perigo vermelho”), apesar do investimento do governo militar, não ganhou prêmio algum. A União Soviética e Cuba boicotaram a exibição do longa, acusando-o de “propaganda descarada de um regime fascista”. Rabbio pensou em reclamar, citando Eiseinstein como o maior panfletário da história do cinema e nem por isso menos genial, mas Gautério o convenceu a ficar calado.
Em meados da década de 80, Gautério morreu de câncer. O regime militar andava mal das pernas e Rabbio havia desaparecido há dez anos, alguns diziam que estava envolvido num projeto de grande porte, mas nada aparecia. Outros afirmavam que estudava telecomunicações ou lecionava em cursinhos no interior.
Um dia, a profecia de Rabbio se concretizou e todas as pessoas, independente de classe social, idade ou posse possuíram aparelhos com câmeras. E foi então que, no dia primeiro de abril de um ano num futuro impensável para os artistas que viveram a ditadura, todos os grandes rios das capitais brasileiras amanheceram com coisas estranhas boiando, montes de carne e metal, engrenagens e ossos, galhos de árvores e estruturas de alumínio. cada uma delas com câmeras acopladas, todas em rede e transmitindo para algo que se chamaria Internet imagens de pessoas assombradas, maravilhadas, aterrorizadas, enojadas, refletindo seus medos, seus sonhos e fantasias em pequenas telas. E então, quando as manifestações tomaram conta do Brasil, clamando por igualdade social e justiça, finalmente o velho Rabbio, com poucos cabelos e a barba completamente branca, deu o ar de sua graça, chefiando um grupo numeroso de artistas gráficos, comunicadores e cineastas de todos os cantos do país, cada um gritando em milhares de celulares, computadores e aparelhos de TV:
– Esses são vocês. Esses somos nós.
E, mais uma vez, veio o caos.


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