Baú do Braulio: “Grande Sertão: Veredas” em cordel

Ontem estivemos com o grande artista Edimilson Santini, um mestre cordelista, lá na Galeteria Cruzeiro (onde nasceu a Kuruma’tá!), na saída Rio Branco do metrô da Carioca. Outros amigos estavam reunidos à mesa, como Aderaldo Luciano e Marcio Martins, e também com a presença randômica do grande livreiro Francisco Olivar, sempre com os ouvidos na conversa e de olho na sua banca fantástica. No meio da conversamos com Santini sobre o texto que Braulio Tavares publicou no seu site, o Mundo Fantasmo, sobre seu aventuroso cordel em que adaptou Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Que tarefa, que empreitada! E bem sucedida! Combinamos que valia a pena compartilhar esse texto do Braulio na Kurumu’tá. E aqui vai!

Texto de Braulio Tavares


O romance Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, já teve adaptações para o cinema (pelos irmãos Santos Pereira), para a televisão (por Walter Avancini), para o teatro (por Bia Lessa) e certamente teve muitas outras – estou citando apenas as primeiras que me vêm à memória.

A literatura de cordel, principalmente a das décadas mais recentes, tem adaptado uma enorme variedade de obras literárias. Entre elas algumas coisas que nos anos 1970, quando comecei a estudar a sério essa produção editorial, seriam impensáveis.

Naquela época, eu não imaginava ver cordelizações das peças de Shakespeare (já tem, por Stélio Torquato), nem dos contos de Edgar Allan Poe (já tem, por Evaristo Geraldo e Rouxinol do Rinaré).

E tem cordelização do Grande Sertão, por Edmilson Santini.

As principais dificuldades para quem quiser fazer qualquer adaptação desse romance são:

  1. o gigantismo do texto, com centenas de personagens e dezenas de episódios;
  2. a complexidade da linguagem;
  3. a riqueza de subtemas sugeridos a cada passo, em áreas que vão desde o romance de cavalaria até a fauna e flora sertaneja, desde o misticismo oriental até as guerras sociais da Primeira República.

Dá pra botar isso tudo num cordel? Não, não dá. Mas dá para fazer o que Edmilson Santini (ator, educador, poeta cordelista atuante no Rio de Janeiro) fez. Fazer um panorama geral da história, e acompanhar de perto a linguagem poética.

Edmilson Santini

Porque a linguagem de J. G. Rosa é acima de tudo poética, no trato com a palavra (as incessantes escolhas verbais, processo criativo que ele pregava com devoção), com a frase, com as sonoridades, com as conotações etimológicas.

Podemos esquecer (nesta análise) as qualidades imensas que ele tinha como romancista, e cuja largueza não dá para formatar dentro do cordel.

Nesse ponto, Santini constrói seu cordel (em estrofes variáveis, mas sempre próximas das formas “canônicas”: sextilha, septilha, décima, parcela) num trabalho minucioso de cortar-e-colar, onde as frases de Rosa são trazidas para dentro do versos e rimadas com as do novo autor.

Abençoadamente, Rosa escrevia muito em redondilhas maiores implícitas. Sua prosa é toda ritmada. Na maioria dos casos, é só cortar – a frase já está com métrica perfeita.

O folheto de 44 páginas se abre assim:

Desta rima a gente parte
Entre a fala e o papel.
Tem sertão em toda parte,
Desenredo em carretel:
Deus e o Demo na Rua,
À luz do sol e da lua:
São Veredas em Cordel. (p. 1)

Os personagens são introduzidos com um pé no romance original e outro no folheto:

Sou protegido de quem?
De um Sertanejo Pajé,
Compadre Meu Quelemém,
Quelemém de Góis, que é…
Meu Quelemém de Cardéque,
Seu sorriso é um pléque-pléque:
Alpercatas de Sumé… (p. 1)

O mesmo se dá com os cenários famosos:

Liso do Sussuarão?
Nem não pude acreditar!
Como alguém atravessar,
Vivo, um Inferno, socavão,
Buraco-chã, grande vão…?
Chão ali tem parentesco
Com rastejante grotesco
Tão grande se emenda em si
Vida em vago corre ali
Liso do Inferno Dantesco. (p. 8)

Uma das regras da adaptação é: “Ninguém está reproduzindo a obra original, pois isto, além de impossível, é desnecessário.”

Adaptar é captar algo da forma, e algo da chama.

É, no caso de obras literárias, escolher um diapasão (toda grande obra tem um diapasão diferente para diferentes camadas: enredo, personagens, linguagem, simbolismo, retrato social, etc.).

A adaptação de Santini vibra na mesma frequência da linguagem rosiana, o que não é pouco, e o fato de se dar nas fórmulas do cordel ajuda a fazer brotar certas pulsações poéticas (em rima e métrica, principalmente) existentes no original, e que muito admiradores de Rosa não percebem, porque são leitores-de-romance sem formação poética. Sem ouvido pronto para perceber as sutilezas propriamente poéticas.

E não é só a escolha verbal ou a cadência do verso. A prosa de JGR é visual, captadora de presenças físicas, o que a torna cinematográfica. Eis a inesquecível passagem em que Riobaldo, menino, vê chegarem de madrugada na fazenda os jagunços armados até os dentes, quando ouve pela primeira vez a canção de Siruiz:

Como quem surge da quina
Da noite, vem da cozinha,
Meu Padrinho, uma lamparina,
Acesa à mão o encaminha:
Abriu a porta, e um desabado
Chapelão, cinema alado,
Me botou pasmo: Lá vinha…

Cinco homens, dez esporas,
Pés semeando poeira,
Dedos quantos, quantas horas,
De caminhada, canseira…
Vi um tal que, pelo vulto,
Pressenti pacto no oculto:
A sombra encheu cumeeira… (p. 14)

Os episódios secundários são pulados por cima, mas o folheto acompanha passo a passo a trama principal de traições, trocas de chefia, perseguição e vingança final. E a linguagem corre junto. Hora de tiroteio, prosa de tiroteio:

E tome lá, cabroeira!
Tome tiro, tome broca!
Broca de mato de loca…
De louca guerra, crueira…!
Cranco de nó de madeira…!
E foi que foi, na escora
De cada pé de pau-tora,
Raiz de cruzado jogo,
Saiu do chão, botou fogo:
Mundo danado caipora…! (p. 26)

Hora de poesia, prosa de poesia:

Noite de toda fundura,
Em Diadorim pensando.
No céu li a Escritura
Das estrelas, soletrando…
Quem disse que ler estrelas
No Sertão não nos faz vê-las,
Por escrito alumiando…? (p. 38)

Existe uma forma meio preguiçosa de escrever cordel, que é a tentativa de ficar perto do vocabulário, do tom, da forma-da-frase do cordel tradicional. Eu mesmo faço isto às vezes, geralmente por mero motivo prático – escreve-se sem pensar muito, “ao correr da pena”, pensando apenas na clareza do dito e na rima do escrito.

Mas o cordel – como aliás, é sempre bom insistir, qualquer tipo de poesia ou de literatura – é feito por quem o faz, na hora em que está fazendo.

Cumpridas as exigências básicas (rima, metro, estrofe), no instante de escrever é cada qual por si, e com o que tem.

O Veredas – Versão em Cordel de Edmilson Santini mostra que o Romanceiro Popular Nordestino é como o Sertão rosiano: está em toda parte. E qualquer um pode entrar ali, porque ele impõe suas leis. As leis do Romanceiro e as leis do Sertão são poucas, mas são de ferro. O que vem depois disso, é o dom de cada um.

Escrito e publicado em Mundo Fantasmo em 20 de setembro de 2019.


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