Ninguém precisa mesmo acreditar

Texto de Terêncio Porto


Juan Pablo Villalobos é um escritor mexicano contemporâneo que já conquistou, além do meu coração, algum espaço no mundo agressivamente competitivo do comércio de papel pintado contendo histórias. No mundo editorial, um lugar nas prateleiras, um lugar ao sol; mesmo espremido entre um milhão de títulos, algum espaço, uma obra em andamento, distribuída pelo mundo, crescente. Pelo menos é o que parece até o momento. Seu primeiro livro, FESTA NO COVIL, de 2010, uma novela de menos de cem páginas escrita genialmente a partir do ponto de vista de uma criança de 12 ou 13 anos, foi traduzido pra mais de 10 línguas e está sendo preparada uma adaptação da mesma pro cinema. É uma obra brutal e veloz, hiper coesa por se tratar do ponto de vista sintético de um ser que ainda não experimentou o mundo para fora das fronteiras de sua casa, listando inclusive que conhece de fato somente 16 pessoas, 17 ou 18 se for pra considerar pessoas mortas na contagem. Seu pai é um narcotraficante sanguinário, vivem no meio do deserto, isolados num rancho fortemente guardado por capangas, onde o menino tem um zoológico particular, entre outros luxos, pra que se mantenha entretido. Esse livro, apesar do reduzido tamanho, me marcou muito por algumas razões, em particular pela sagacidade da construção do ponto de vista infantil e por conter uma das cenas mais violentas que eu já li ou presenciei. Ou seja, combinando essas duas marcas, quando você joga a violência dentro do ponto de vista infantil, dá pra imaginar o quão radical isso pode ser.

FESTA NO COVIL faz parte de uma trilogia mexicana completada por SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL e TE VENDO UM CACHORRO, um livro que dá pra se escangalhar de rir do começo ao fim, sinceramente. O humor é uma marca na obra de Juan Pablo. Além da violência e do sarcasmo, que é em si uma espécie de violência do humor. O livro do meio da trilogia, SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL, é o menos brilhante, mas ainda assim brilhante, e parte fundamental desse arranjo triplo que parece um clássico acerto de contas com sua origem, por mais clichê que isso possa parecer. Os dois últimos, inclusive, com toques fantásticos na melhor tradição latino-americana. Toques discretos, porém marcantes, sem negar as origens ou inspirações, flertar, homenagear ou brincar com elas, pra então ir adiante.

Superado o acerto de contas, ou não, porque a aritmética do afeto é sempre incerta, o fato é que o livro que se seguiu à essa trilogia, o NINGUÉM PRECISA ACREDITAR EM MIM, me encantou ainda mais que os outros, parecendo realmente que o tal acerto de contas, independente do resultado afetivo / emocional, deu uma musculatura de intenções fabulosa ao autor. Acho meio ridículo dizer que ele se superou porque tudo que vem depois necessariamente superou o que veio antes, ao menos numa perspectiva cronológica, mas também numa perspectiva de acúmulo de trabalhos, porque se somam em camadas. E, apesar de pra mim este ser o melhor livro, me parece que o NINGUÉM PRECISA ACREDITAR EM MIM não seria tão crível ou tão apetitoso se Juan Pablo não tivesse se desenvolvido, em aspectos diferentes da sua escrita, no processo da trilogia etc.

Ele pôde pegar a singeleza e a sagacidade do primeiro livro, o atavismo e o ressentimento com a pobreza de sua origem (do México, não necessariamente de sua origem pessoal, da qual não sei nada) do segundo, e o surpreendente humor do terceiro, mordaz e realmente hilariante, frondosamente hilariante (efeito similar, pra mim, em termos de ficar com frequência com a face doída de tanto rir, até hoje, só com o AGORA É QUE SÃO ELAS, do Leminski, e o PERGUNTE AO PÓ, o mítico clássico do Fante), pra então, revestido por certo tônus que só o fazer criativo pode conferir, se entregar à construção de uma nova obra totalmente autêntica, mais robusta (não só pelo tamanho, mas sobretudo pelo vigor narrativo) que as anteriores, e ainda mais deliciosa. E isso tudo mantendo-se fiel a si (ou ao que pareceram ser seus “propósitos” nas obras anteriores) pois NINGUÉM PRECISA ACREDITAR EM MIM evoca todos os temas e subtemas pregressos de sua obra. Porém, ao invés de soar repetitivo, soa totalmente inovador.

E para fazê-lo estrutura o livro no qual ninguém precisa acreditar, conforme o título, em alternadas vozes narrativas, fragmentando-as com soberba precisão evolutiva, por assim dizer. Alternâncias dadas não só entre os dois supostos protagonistas, o jovem doutorando mexicano ironicamente batizado Juan Pablo Villalobos – peroetnicamente mais “alemoado” que o escritor (nas edições brasileiras de seus livros há sempre foto do autor pra gente verificar que ele é mexicano com bastante cara de mexicano, em contraponto à personagem, descrito com cabelos e olhos claros) –, e a em princípio antagonista, sua conterrânea ex-namorada, etnicamente bem mexicana / maia, que o acompanha na viagem de estudos para Barcelona. Ambos naturalmente narram em primeira pessoa, porém com a distinção da voz feminina se organizar num diário, enquanto a masculina narra o presente, o que lhe acontece. Somam-se a essas vozes as missivas escritas pelo primo (endereçada ora a um, ora a outro) que empurrou os dois pra um contexto marginal na viagem – experiência que a priori era pra ser um idílio – e outras escritas pela mãe de Juan Pablo pra ele, onde rigorosamente só fala de si em terceira pessoa, “a sua mãe acha…”, “a sua mãe pensa que você deveria…” etc. E as missivas têm essa mesma característica, um tanto delirante, dos interlocutores autorreferentes fazerem o tempo inteiro perguntas (retóricas ou não) que eles mesmos respondem, num estilo um tanto opressor e hiper cagarregras.

O antigo casal mexicano vive separado em terra estrangeira (sem raízes, sem vínculos) e perdidos em seus objetivos. De fato, a mulher nunca teve um, seguindo o namorado, ou ex, na viagem, mesmo depois de ter tomado um pé na bunda as vésperas do embarque, e depois ser convencida a ir, por obra do tal contexto marginal pro qual são empurrados. Os dois se enredam numa trama policialesca, costurada entre uma profusão de estrangeiros e uns poucos locais, e que se equilibra – somadas às questões undergrounds / criminosas – entre ironias acadêmicas e literárias ao longo de todo o livro. De uma forma emocionante e fluida, que impele à leitura, bem como mais densa e misteriosa que a adotada nos livros da trilogia. Mais bolañamente aberta, plural. Dando conta de toda ambiguidade que a metalinguagem e as mudanças de narradores podem causar, de uma maneira bem feliz, criativamente falando. Ao ponto de, mais ou menos na segunda metade do segundo tempo de jogo, a antagonista assumir o protagonismo, e este de fato ser oferecido de bandeja às mulheres da trama, evoé, e desta forma o livro se encerrar totalmente feminino, tendo os machos como meras lembranças do passado. Isso depois de, ao longo do desenvolvimento da trama, ter esbarrado em várias questões de gênero, particularmente mordazes nas abordagens porque permeadas por citações a questões contemporâneas a la Judith Butler etc.

O que há de mais brilhante, no entanto, é o fato de, em determinado momento (que entra / acontece discretamente, porém num crescendo), o desenrolar da trama propriamente dito começar a comer o próprio rabo, subtraindo a credibilidade do desenrolar policialesco, arrastando a verossimilhança da história pra possibilidade de tudo não passar de criação literária, flertando com essa ideia numa medida muito boa pra que se mantenha a ambiguidade até o fim. Em determinado momento Valentina, a ex-namorada que assume o protagonismo, consegue pôr as mãos no que seria o manuscrito que estamos lendo, ou do lido até aquele determinado ponto porque pra frente não estaria escrito ainda, deixando também a dúvida se o diário da Valentina até ali seria escrito por ela mesma ou por Juan Pablo, esses tipos de paradoxos inebriantes. Um recurso que me lembrou imediatamente o PORNOPOPÉIA, do Reinaldo Moraes, e o LEVIATÃ, do Paul Auster, que também brincam com isso. E certamente lembrará uma penca de outros que eu não li, não é exatamente a maior novidade do mundo.

A maior novidade do mundo é a forma como o Juan Pablo, autor, engendra isso, tudo ao mesmo tempo numa linha, porque tudo acontece a seu tempo e toda leitura em princípio nos entra de maneira necessariamente linear, mas uma linha que se equilibra e se embola nela mesma. Como uma figura de Escher na qual a água cai de um compartimento a outro, depois a outro, depois a outro, até chegar no topo, mas como se um arquiteto apresentasse isso como proposta, pra você acreditar na obra, obra de alvenaria mesmo, com orçamento (o custo-verossimilhança) e forma de pagamento etc. Você poderia dizer “você tá de sacanagem, arquiteto?”, bem como poderia também se constranger, fingir acreditar, ou quem sabe acreditar que o tal arquiteto possa realizar uma mágica ou sei lá (vivemos tempos de insegurança, de muita incerteza). Uma espiral contorcida no plano, transformada em círculo, porém uma linha, no fim das contas. É, de certa forma, um moonwalk na crista da onda da metalinguagem, um floater (manobra do surf que faz com que o surfista flutue inverossimilmente na crista da onda, por alguns segundos que parecem eternos) porque marca a ferro a possibilidade ambígua do que está sendo lido ser uma verdade inventada, como toda literatura de fato o é. Você segue lendo até descobrir (ou lembrar) que o lido é mentira, papel pintado, ou que está sendo escrito pra se descobrir o que é a verdade, tecendo aí um dos sumos da literatura: quando esta duvida de si mesma, graciosamente, dando uma dimensão ainda maior a qualquer suposta verdade que possa existir por aí.

P.S.: Se você, Juan Pablo Villalobos, mexicano com cara de mexicano, um dia ler essas linhas, e ficar aterrorizado porque eu não entendi nada do seu trabalho, me perdoe. É que eu o adorei demais, e daí vieram esses delírios em torno do mesmo.


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