Aos que resistem [Poemas do livro Ovos de ferro]

É uma alegria publicar na Kuruma’tá a poesia de Maria Cristina Martins. Somos amigos há muito tempo e por conta dos desvios e desvãos da tal da vida, ou das vidas, tantas vidas, paralelas, cruzadas, entrecortadas, que vivemos, acabei por perder de vista o lançamento do seu livro Ovos de ferro, no cada vez mais distante ano da graça de 2016. Sem dramas! Eis aqui a poesia de Maria Cristina, poesia que resiste com voz ativa, poesia que dá vontade de ler em voz alta e cabeça erguida, da janela do quarto para o mundo. Imagino essa cena e já imagino janelas outras se acendendo na noite, tantas incomodadas, outras tantas atentas, decorando, sorvendo os versos, para recitá-los enquanto a noite não acaba.

Maria Cristina, seja bem-vinda, com seus versos luminosos, à Kuruma’tá.

Toinho Castro (Editor)

Poemas de Maria Cristina Martins


o amor? pássaro que põe ovos de ferro.
[guimarães rosa]

a desobediência é […] a virtude original do ser humano
[oscar wilde]

naquele tempo o tempo parecia bom
tempo de caminhar a favor do tempo
de zombar do tempo
de vencer o tempo
correndo e beijando
e bebendo e falando e pensando
e tentando mudar o mundo
empunhando armas
requebrando os quadris
no entanto abril chegou
chocando os ovos de ferro
servidos em dezembro
quatro anos depois
afinal


o anestesista pediu acetona, tirou o esmalte prateado da unha do meu fura-bolo e aplicou a anestesia. seu rosto teria sido o último rosto que teria visto antes de morrer, se tivesse morrido naquele dia. tive o abdome remexido e costurado tipo uma roupa rasgada. de lembrança uma cicatriz que atravessa verticalmente o umbigo. uma centopeia retorcida pelo calor, que para antes de avançar para o órgão seguinte. penso que posso ter morrido e, antes de ter concluído a passagem para o mundo dos mortos, ter me transformado numa espécie de vampiro ou zumbi. zumbi, não, porque zumbi é o morto que ressuscita. vampiro é aquele que antes de morrer definitivamente sofre uma mutação. posso ter sido vítima da burocracia celestial: são benedito manda um memorando em quatro vias para são judas tadeu avisando que eu vou morrer no dia 2 de agosto de 1997, de hemorragia no baço ou isquemia no intestino. são judas tadeu guarda uma das vias, carimba as outras três e as repassa para o rh do céu, coordenado por santa helena. santa helena arquiva uma das vias, coloca mais um carimbo nas que sobram e manda para são pedro. com esse trâmite demorado, agravado por um feriado no meio do caminho, são pedro acaba recebendo essas vias bem no dia fatal, na hora da cirurgia, repassando, com atraso, uma delas para a morte, que já estava a par da situação, mas ficou com receio de me levar sem ter a ordem formal, por escrito, carimbada e assinada por todos os responsáveis. aí fiquei assim, entre dois mundos, como num limbo. pior, que nem limbo existe mais: o papa bento xvi acabou com o limbo; não sei se francisco, o argentino, revogou essa ordem. meu destino, que se encerrava naquele dia, naquela hora, prosseguiu sem previsões, sem demandas, sem razão. pode ser que ninguém venha a reparar nesse erro. as vias foram arquivadas, a operação foi dada como exitosa, e a única que realmente sabe do equívoco, a morte, não vai querer levantar uma questão que pode acabar gerando problema para ela. afinal, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco, dizem. isso tudo considerando que eu iria para o céu, claro. não estou muito certa disso. ou será que o inferno é aqui? talvez as teorias sobre mundos paralelos expliquem. morri em uma dimensão, mas continuei em outra, tendo minha vida reproduzida de forma grotesca, como a liga da justiça do mundo bizarro. será que é um carma? pecados de vidas passadas? desta mesma? talvez cada um tenha o seu demônio, representado por aqueles que mais deveríamos amar e em quem mais deveríamos confiar. talvez eu tenha escolhido errado entre a mãe real e a mãe-monstro.


protect me from what i want
[placebo]

na caixa onde guardo meus pesadelos
há um sem número de rostos estranhos
busco reconhecê-los nas ruas
com avidez pelo ignorado

(sempre parece proposital)

na caixa onde guardo meus pesadelos
há tentativas de fuga malogradas
os pés grudados no asfalto
não andam não correm

na caixa onde guardo meus pesadelos
há vozes que parecem revelar
o significado da minha existência
mas não escutam os ouvidos
como que sujos de cera

a caixa onde guardo meus pesadelos
agora fica em lugar seguro
um pano invisível a cortina
da minha própria curiosidade
um dente de alho a protege
do meu próprio veneno


vii.i – gato preto

estou na estação
esperando a barca
esperando alguém
esperando o que não se deve esperar
porque não vem

o gato preto surge da baía
escala o muro que separa a baía da estação
me chama para voltar à baía com ele
dizendo que não faz mal a poluição
não atrapalhará nossa missão
que eu não entendo bem o que é

há uma missão
eu acho que ela está carregada de utopias
digo isso ao gato
que me responde que ainda estou muito presa
a minha vidinha correta concreta
que utopia é ficar assim quieta
que utopia é ficar aqui esperando a barca
fazendo rimas estúpidas
e se achando morta

eu nego
mas sei que ele está certo
em silêncio vou com ele
como se não quisesse
como se não estivesse
tomada de desejo de baía


campanário ainda silencioso:
o dia não chegou na metade
ou o som do badalo não foi capaz
de me tirar do sono atrasado

acompanho a subida lenta porém decidida
de um pequeno réptil
pelo umbral esquerdo da janela
onde ontem apoiei as duas mãos
para tentar uma posição diferente de amor

feito dançarina busco o mais alto
fincada no chão
(não como raiz – presa imóvel)
feito lutadora de arte marcial
em autodefesa
feito barco sem pressa
feito água que ocupa o recipiente
vaza
feito barco a motor contra correnteza
reagrupada se não na totalidade
um parcial que basta para seguir
um vez em quando que reabastece

quando se deu o septingentésimo quadringentésimo
trigésimo quinto dia
parei de analisar o fato
não tracei mais hipóteses
me livrei da obsessão do detalhamento
do perfeccionismo da análise

que se quebrem os ovos
e se façam omeletes