Prefácio

Texto de Luiz Fernando de Oliveira


Minhas distâncias ficaram maiores. É o preço que pago tentando não sofrer. Passo por outras ruas, dou voltas, retardo as chegadas. A pé eu me canso, mas não encurto os meus caminhos por aquela rua, não mais.

Paralelas à rua onde moro, na direção do centro da cidade, há outras duas, uma rodovia e depois, mais abaixo, aquela que me obrigo a esquecer, da qual agora fujo. Pudera eu arrancá-la do chão onde se finca e extirpá-la por inteiro de mim.

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Eles ficavam sempre juntos. As minhas idas e voltas ao trabalho, ao mercado, ao verdurão e à academia eram alimentadas com a alegre visão dos dois, ali, na rua que facilitava as minhas peregrinações cotidianas, ligava com rapidez a minha vida ao lado de lá, satisfazia a minha pressa, e hoje me força a ser menos ansioso. E menos contente.

Na primeira vez que os vi eu percebi que eles já estavam velhos, pois a velhice se mostra da mesma forma em tudo o que vive. Ela imprime nas faces o selo da debilidade, reduz a marcha dos corpos à máxima lentidão, amarela o verde, branqueia o colorido, faz murchar o viçoso. Para os dois, porém, o tempo era desimportante: aqueles… ¿companheiros?, sim, creio que os possa chamar desse modo, viviam o seu hoje eterno – ¿o passado?, uma quimera, ¿o futuro?, ¡nunca seria! Não para eles.

Passando, via-os lado a lado, esquentando sol – como dizemos os mineiros – no tempo do frio. Para a chuva nem ligavam. Ela era vida. Não nascem muitas flores do chão seco. No calor aconchegavam-se debaixo da primeira marquise que encontravam ou sob cacos de telhados. Era tudo muito simples: acompanhar o movimento da Terra e ir para onde o seu giro mandasse luz ou sombra. ¿Complicar para quê?

¿Era amor o que alimentavam um pelo outro? Pode ser… Para mim, que os via de fora, certamente. Corriam, mesmo as forças já não sendo tantas, agradavam as pessoas, mas não a todas, odiavam humanamente o ruído das motos, contra o qual praguejavam a seu modo, espreguiçavam e se refestelavam com a vida. Vida que passa.

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Certo dia, passando por ali, vi apenas um. Olhei ao redor. Nada. “Deve estar descansando”, pensei. E passei no outro dia, e em muitos. Nem sinal do outro. Foi quando o olhar triste do que ficou me denunciou o fim daquela… ¿amizade? O amigo, ou seja lá o que for, havia morrido, mas a esperança do que ficou vivo foi o que mais me doeu – ainda dói. Ele olhava numa mesma direção, ansioso pela volta do companheiro que – isto ele não podia nem pode saber – não retornará, e esta é a crueldade da esperança. Seus olhos fincados no horizonte, ressecados pelo pouco piscar, eram desoladores. Pondo-me infantilmente em seu lugar, eu imaginava seus pensamentos, se é que ele pensava:

“¿Ele foi embora? ¿Por que? ¿Será que volta? ¡Ah, vai voltar! ¿Mas, então, que demora é essa? Era todo dia nós, agora sou só eu. ¿É assim mesmo? ¡Ali, ali, lá vem! Não, fui enganado pela sombra, pelos barulhos, pelos sorrisos de quem mente para mim. ¿E eu, vou ficar aqui sozinho? ¡O combinado não era esse! A gente ficaria aqui até o mundo não ser mais mundo, até as motos se extinguirem, os carros serem corroídos pela ferrugem, as pessoas se tornarem melhores. Acabou. Saudade”.

Vê-lo me entristece. Imaginar que tudo isso, mesmo sem as palavras, poderia se passar no seu coração, acaba por me destruir. Se ele se conformar então, será o seu fim.

Egoísta que sou, decidi não passar mais por aquela rua, para não vê-lo e parar de imaginar a sua dor. As minhas já me doem o suficiente. Sou covarde. Refugio-me na crença de que sou incapaz de fazer algo por ele, e vou levando nos ombros o peso da minha omissão. Conforto-me ao saber que, como humano, sou limitado. Embriago-me na fantasia de que ele já esteja bem, num presente que seja capaz de apagar o passado – passado que para ele e o amigo nunca existiu.

O passado dói.

Aquela rua não mais me verá. Eu não suporto o tamanho daquela solidão. Furto-me para outros longes. Caso eu viva ainda tempo suficiente para perder muitos amigos e belas visões, com certeza deixarei de passar também por caminhos que me remetam a eles e elas. Se eu viver por muito tempo, morrerei ainda para muitas ruas.


Luiz Fernando de Oliveira é professor da Rede Federal de Ensino nas cidades de Nepomuceno e Lavras, ambas nas Minas Gerais. Autor de livros e textos acadêmicos e literários.