John Cage na 7 de setembro

Texto de Toinho Castro


Era o ano de 1985, quando adentrei no auge dos meus 19 anos o grande salão, ou melhor, galpão, em que consistia a Livro 7, livraria no centro do Recife, na rua 7 de setembro, que ostentava então o título sagrado de maior livraria do Brasil. E devia ser mesmo. Era um ritual ir até a Livro 7, vadear entre as prateleiras de livros, ler livros a esmo, conferir as novidades de um mercado editorial muitas vezes inalcançável para meu bolso. Mas ir até lá já era bom… Era como se o mundo tivesse acabado e só restado os livros; e estavam todos ali, reunidos. Foi lá que tive a dimensão de que a leitura era um recurso inesgotável e alcancei aquela tranquilidade de que sempre haveria livros para ler. A Livro 7 me tranquilizava diante do mundo . Um reino seguro e secreto,ainda que público. Acho que posso falar por muita gente, ao dizer que entrando ali acessávamos um espaço mágico, onde o tempo parecia em suspensão. Do lado de fora o circo pegando fogo no vuco-vuco da 7 de setembro, e um único passo, para dentro, nos colocava na redoma da leitura e estávamos protegido. Talvez seja uma visão por demais romântica; pois dane-se, que o seja. Desses miúdos romantismos vamos alimentando a nossa alma, se é que ela existe. Ou o que quer que existe. Se algo existe.

Foto: arquivo pessoal de Tarcísio Pereira , proprietário da Livro 7 | Fonte: Poraqui.com

E foi naquele 1985, ou terá sido 1986? Bom, a essa altura da vida, anos assim remotos são miudezas também. O que importa é que ao entrar na Livro 7, já naquelas primeiras estantes que haviam na entrada, dei de cara com um livro inesperado. O volume chamava-se De segunda a um ano, e reunia, com tradução de Rogério Duprat, escritos e conferências do músico americano John Cage. Há tempos que eu namorava John Cage e seu trabalho, por conta do meu contato com o Concretismo e todas as portas que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, abriram na minha vida, no meu juízo. Dentre essa portas estava a que levava a Cage. Nem acreditei quando vi aquele livro ali, possível pra mim. Pus-me a folheá-lo com alegria, amor mesmo, observando a diagramação tão diferente. Os jogos tipográficos do longo e maravilhoso poema Diário: como melhorar o mundo (Você só tornará as coisas piores), os espaços, os brancos, a prosa bem humorada, aforismos, conferências… Duchamp, Schoenberg, Jasper Johns; cogumelos e música (essas duas paixões de Cage, que no idioma inglês se seguem no dicionário: Mushroons e Music). Era quase como se cada página fosse o começo de um novo livro. Depositei o livro de volta na prateleira com as mãos carregadas de eletricidade estática. Não comprei naquele dia mas não tardou a levá-lo pra casa, pra minha vida.

Para mim esse foi um livro de consulta permanente. Era a ele que eu sempre recorria, a consultá-lo como se fosse o I-Ching, ao acaso, como numa boa música de Cage. Seu trabalho me desafiava a pensar diferente o tempo inteiro. Que inteligência rápida e vibrante, que energia para transformar as coisas. Imaginava sua música pelo que eu lia a respeito. Anos depois é que fui escutar sua obra e sua risada aberta. Naquele ano de 1985, Cage esteve no Brasil, participando da Bienal de São Paulo. Eu não sabia disso. Não havia internet e eu sabia muito pouco. Mas esse pouco que eu sabia, e mesmo compreendia, me era muito precioso. Talvez eu não tivesse esses conteúdos muito ordenados na minha cabeça, porque era uma acesso muito fragmentado às coisas. Lembro que na minha aventura concretista li o Panaroma do Finnegans Wake, um livrinho vermelho danado da editora Perspectiva, sobre o último livro do James Joyce, com estudos e fragmentos traduzidos pelos irmãos Campos. Veja bem, era um livro de 1962, eu nem tinha nascido, mas que eu lia como se fosse novo. Isso porque ele inaugurava algo em mim. Era uma descoberta. Não entendia tudo mas ia captando mensagens e guardando para o futuro. Quando li que Cage havia musicado algo do Finngegans Wake tanta coisa se materializou em mim e fez sentido. Era um processo de aprendizado. De segunda a um ano chegou como uma peça perdida, que se encaixa num enorme quebra-cabeça. Posso dizer, hoje, que é um dos livros mais importantes da mim. Aquele dia em que dei com ele na Livro 7, foi um grande dia. Inesquecível. Um momento rápida na história de uma vida. A decisão de entrar numa livraria que mudou minha vida.

Preciso contar que minha cachorra, eventualmente, comeu meu livro, ou boa parte dele, quando eu já morava no Rio de Janeiro. Perdi assim meu oráculo, minha sorte de acaso, decorado de cabo a rabo e sempre novo. Mas como sempre achei minha cachorra, a Nina, mais importante que meus livros, ficou tudo bem. Aceitei o acaso e a perda. Passei a vivê-lo na minha cabeça, do que já carregava mesmo comigo. Nunca mais o encontrei numa livraria. Com a internet, com as livrarias online e a Estante Virtual, acabei por descobrir que tratava-se então de um livro raro e caro, fora de alcance. E assim foi por anos, até a editora Cobogó, da Isabel Diegues, colocá-lo de volta nas nossas vidas, com uma bem acabada reedição. Reencontrá-lo numa livraria teve esse sabor de velhos amigos que se reencontram. Retomei sua leitura ocasional e recorrente, ao acaso que tanto permeia a obra de Cage e seu pensamento. Aí, ano passado, gente, eu entro na Blooks Livraria, aqui no Rio, e lá na estante de lançamento eu vejo uma capa preta em que se lê: Silêncio. A mesma Cobogó acabara de lançar o primeiro livro de Cage a reunir seus textos. Quando eu li De segunda a um ano, lá em 1986, eu soube da existência desse livro e desde então vinho esperando que fosse lançado no Brasil. Uma espera de 33 anos que chegou ao fim. Leio a ele e De segunda a um ano como se fosse um livro só, e talvez o sejam, né?!

E hoje, com a web, navego no vasto universo da obra de John Cage e em tudo que com ela se conecta. Nomes como Merce Cunningham e Morton Feldman se materializaram, em vídeos que pude assistir, por exemplo, na UBU Web e em livros outros publicados, como o pequeno livro O futuro da música local, de Feldman, publicado pela Numa Editora. Essa editora também publicou o livro MUSICAGE palavras, uma conversação de Cage com Joan Retallack, devidamente adicionado à minha modesta biblioteca. Uma biblioteca que alimenta minha vida. Ainda não entendo tudo que leio nesses livros mas sempre achei também que nunca se trata de entender, mas de receber algo e permitir que isso nos transforme e mude nossa rota. Assim tem sido.

E agora que ensaio finalizar esse texto, que saiu mais longo que o imaginado, me vem essa memória incrível. Minha amiga Juliana Japiassú, naquele Recife dos anos 1990, comentando comigo o trabalho de Merce Cunnigham, que ela conhecera. Será real essa memória? Será real que assistimos a um a fita VHS com Merce dançando? Quero muito acreditar que sim. Que ali, remotos como estávamos, éramos capazes de ver o mundo e nos espantar e nos encantar com Merce, com Cage e com nós mesmos.


Um jeito de ajudar as livrarias a superar essa crise do COVID é comprar livros. Deixo aqui essa dica para você comprar na Blooks os livros de John Cage e Morton Feldman, e experienciar um pouco do que vivi e vivo com esses livros ou, quem sabe, e provavelmente, algo completamente diferente e novo. Clique nas capas para ver os livros na loja da Blooks, e aproveite com ver o que mais tem por lá. Uma riqueza de títulos.


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