Um filtro de barro dentro de casa

Texto de Toinho Castro


Quando deu-se a pandemia e na sequência a quarentena no Rio de Janeiro, resolvi por em prática um ideia que há tempo vinha alentando: Comprar um filtro de barro. Sem saber do que viria pela frente e já de olho no colapso dos sistemas, pensei logo que poderíamos ter dificuldade de comprar água mineral. Como vínhamos de uma crise hídrica, por conta da contaminação do principal sistema de abastecimento do estado do Rio, beber água mineral tornou-se uma rotina, mesmo depois que o problema sentiu-se resolvido. O filtro de barro seria a garantia de ter água para beber enquanto cumpríssimos os ditames do isolamento e distanciamento social, que estava já a pautar nosso cotidiano.

Comprar um filtro de barro é trazer uma pessoa pra dentro de casa. O bicho não é plug & play. Tem um processo, uma adaptação à nova vida que ele vai levar fora da lojinha em que dormia até ser resgatado. Antes de poder beber a água que ele verte, é preciso filtrar uns bons litros da mesma até que se vá certo gosto que a enfeita, por demais desagradável. Diz o folheto da vela (ou como se lê, o elemento filtrante), que deve-se filtrar uns 30 litros de água antes que esteja adequada para o consumo. Aí começa a relação com essa criatura que é o filtro de barro. Primeiro a gente ferve a água da torneira que vai abastecê-lo. Então deixamos que ela esfrie naturalmente para que seja derramada na entranhas do filtro, como uma pequena cascata cristalina. O som que isso faz já é lindo, da água caindo no oco da parte superior do filtro, que se ocupa desse volume que ainda será filtrado. Depois de tampada a abertura, imagino o silêncio naquele interior escuro, como de remotas cavernas, ou poços nos ermos do sertão.

E aí temos que dar conta da filtragem desses desses primeiros litros até que um primeiro copo de água pode ser experimentado, uma água como que depurada, maturada, que não é simplesmente obtida, mas extraída das virtudes da lentidão. Esse primeiro copo sela a comunhão da família com o filtro, que agora sim, convertido na sua utilidade mágica elege-se como um novo membro, a partilhar do aconchego que é uma casa.

Uma coisa boa do filtro de barro? Suas paredes frias. Você encosta a mão no filtro e sente a friagem do barro, como se acumulasse noites. A textura do material, a lisura que se deu àquele elemento extraído do chão rude. Quando olho para o filtro de barro, lembro das barreiras que a estrada cortava no caminho entre o Recife e Natal, caminho de minha infância. Recordo que de certa feita o ônibus da Viação Nápoles quebrou bem junto a uma dessas barreiras. Nas longas horas em que esperávamos a chegada de um novo ônibus para nos levar ao destino, aproveitei para gravar ali no paredão de barro o meu nome, mesmo sabendo que seria lavado pelas chuvas. Olho para o filtro, penso no seu dentro e me vem esse nome inscrito simbolicamente em seu interior; irmanados que somos então.

filtro de barro
que de sua posição de lótus
me observa
que dentro de si reserva
a água que mata
minha sede

filtro de barro
que no silêncio só se escuta
o gota a gota
do teu pulso
que nem balanço
de rede

Outra coisa boa do filtro de barro, além da água que nos provê, naturalmente, é esse pingo que se escuta de dentro dele. Noite dessas, já tarde, passei por ele e escutei aquele gotejar, esparso mas recorrente, compassado. Uma música mínima, que pontua sua existência e compromisso com o resto da família. Quando o pingo cai e encontra a água, já filtrada, que repousa no compartimento inferior do filtro (inferior na posição física que ocupa no filtro, mas superior na missão de conter e dar saída à água de beber), escutamos aquele som que é como séculos, como o som da primeira gota que caiu numa porção de água. Tem um eco e um oco que invade ouvido, adentra o juízo de um jeito que você até escuta uma voz remota chamando: menino, vem beber água!

Isso é um filtro de barro dentro de casa. Outro dia, enchendo uma garrafa, a água já minguava em sua torneira quando o inclinei, para que mais água, que eu sabia dentro dele, pudesse sair e completar minha tarefa de encher a garrafa. Que gesto de tantas gerações, que me veio tão naturalmente, como respirar. Lembrei de um texto de Julio Cortázar, no seu O jogo da amarelinha:

Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica.

Olhamos para ele e sei quele nos olha, concentrado que está no chamado ao qual atende, um sistema fechado, autorregulado, que só precisa que você o abasteça. Como uma ostra secreta, assaltada por um grão de areia, vai gerando suas pérolas límpidas, que nos oferece com silenciosa generosidade. Espírito antigo, como os gatos, é um elemental da casa, uma presença ancestral e carregada de história. Beber água do filtro de barro é beber água como minha mãe e meu pai, como meus avós, beber como se fosse de um riacho secular, infiltrado na nossa cozinha, o riacho subterrâneo que o professor Lidenbrock usou de guia na sua viagem ao centro da terra, o Hans Bach. Água lenta, como lento deve ser o mundo, a verter-se dentro de si.