Ópera de retalhos sobre a verve jacksoniana (100 anos de Jackson do Pandeiro)

Nesse 31 de agosto de 2019 celebramos o centenário de Jackson do Pandeiro, o grande Jackson do Pandeiro, nascido em Alagoa Grande, na região do Brejo da Paraíba. De lá partiu pra embolar o Brasil e transformar nosso jeito de dançar, de tocar, de ouvir e de cantar.

O poeta Aderaldo Luciano, que andava sumido da Kuruma’tá, retorna pra falar de Jackson, pra falar com Jackson, no ritmo do gênio e dos caminhos que ligam a Paraíba ao Brasil.

Texto de Aderaldo Luciano


Discorre o primeiro Cantador:

— Lembro da primeira vez
Que ouvi Jackson do Pandeiro.
Foi de manhã bem cedinho
Na rádio de Juazeiro
O locutor disse assim:
“Já está perto do fim
De nossa trilha de ouro.
Escutem com atenção
Mais um clássico do sertão!”
Tocou: Casaca de Couro.

Foz em off

— Dois momentos na vida musical de Jackson aparentemente se contradizem, mas não funciona assim a escalada de um artista forte e radical como o paraibano. Todos conhecem o êxito de Chiclete Com Banana no qual o cantor assume sua radicalidade negando-se a aceitar o alastramento da música americana entre nós. O Tio Sam não respeitava o tamborim, confundindo samba com rumba, esquecendo-se das originalidades do pandeiro e da zabumba. Mas o tempo e o conhecimento foram abrindo aos poucos os ouvidos e as possibilidades jacksonianas. Ora, a influência do cinema americano substanciava-se no próprio nome, primeiro Jack, depois Jackson. Até que no disco Um Nordestino Alegre entra em cena o samba nordestino Amigo do Norte contando a história da amizade entre esses dois elementos. Todo o arranjo é plantado no diálogo entre a sanfona e o clarinete e um breve bate-papo no qual um americano de sotaque paraibano chama o Jackson de Zacks. É sensacional quando Jackson diz: “Como é, esse minino, gostasse?”

Em 1981, antes de entrar no palco para mais um show em São Paulo, o Rei do Ritmo afirma estrategicamente: “Cheguei a conclusão de que tudo é coco!”. Uma afirmação condizente com toda uma trajetória que teria como balanço primeiro e fundador o coco. A obra de Jackson se confunde com dois ritmos: o mesmo coco e o samba urbano carioca sincrético com o ritmo antecessor. Dentro da panela de pressão jacksoniana ferviam os dois ritmos, um entrando dentro do outro, num matrimônio cujas premissas estavam escritas no fundo da terra.

— Durante o mês de janeiro de 2016 iniciei a série de alusões a Jackson do Pandeiro, o paraibano de Alagoa Grande, autarquia da música brasileira. Certo dia desse mesmo janeiro, Lau Siqueira, então secretário de cultura da Paraíba do Norte, publicou a foto na qual aparece a estátua do Rei do Ritmo vandalizada em plena capital, João Pessoa. É uma prática, infelizmente, comum. A agressão à cidadania se dá de várias formas, inclusive atacando sua memória cultural, daquela maneira. A fotografia, pela assinatura, é de nosso amigo Aurílio Santos. Canta o segundo Cantador:

— Meus olhos pingaram ácido,
Depois de arregalados
Ao ver a estátua de Jackson
Com olhos violentados.
Alguém na febre dos cães,
Não respeitando as manhãs
Dos que zelam a tradição
Jogou tinta em vã labuta
Porque não tinha cicuta
Pra dar ao Rei do Rojão.

Na rota dos infiéis.
O sol teve olhos vazados
O dia perdeu seus pés.
Ritos inegociáveis
Nesses dias tormentáveis
Ferem homens coerentes.
Mas há vontades secretas
Nas mãos de falsos poetas
Com suas pautas doentes.

O certo virou o errado,
O cão mia e o gato late,
A lama é a tinta que está
Na caixa do engraxate.
Quem vandalizou a imagem?
Quem manchou a homenagem
Feita a Jackson, o imortal?
Talvez que nunca apareça
Até que a gente se esqueça
E ache tudo normal.

Cantador:

— Se eu tivesse, de Jackson,
Um pouco do seu carisma,
Migalhas de sua ginga,
O alcance de um seu melisma,
Seria só um babau
Que todo dia se abisma.

O pandeiro de Jackson foi açoite
Pois seus dedos pulsavam de energia.
Todo o Sol se calava, sendo dia;
Transformava-se em Lua, sendo noite.
Para que o incauto não se afoite,
Pegue a música Chiclete Com Banana.
Escute-a por toda essa semana
Reparando no solo do pandeiro.
É açoite, sol, lua e candeeiro.
É a iluminação, pari-nirvana.

Do lado da rua, do concreto, do asfalto, dos cabarés e arranca-rabos, reinou o Rei do Ritmo. Pois é: Zé Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro. Do couro e dos guizos do seu instrumento vimos a professorinha Dona Filomena soletrando o Bê-a-bá, valentões acabadores de forrós amolando suas facas, gafieiras intermináveis pelos subúrbios do Rio de Janeiro, mulheres que trocaram de sexo numa viagem feita a Hollywood. O coração de Jackson pulsava saltitante e inebriava nossos tornozelos. O zabumbeiro desprevenido atravessava o rojão se não entendesse sua sincopagem. Dizia que todos os ritmos provinham do coco, inclusive o rock’n’roll. Jackson desafiou Tio Sam, traduziu o linguajar da saparia na Lagoa do Paó (às margens de onde nasceu), ofereceu tutano e xarope de amendoim pra quem andava caindo do banco. Teve até coragem de peitar Gonzagão, dizendo que seu baião, na verdade, era coco. Foi-se embora, encantado e jovem. Parece que ouço sua pergunta mais que atual: — Que briga é aquela que tem acolá?…

Cantador:

— Jackson do Pandeiro e Almira,
Na esquina do destino,
Encontraram-se feito um doce
Que cai na mão de um menino.
Um de cá, outro de lá,
Como o terço bizantino.

Imaginemos agora
Esse Jackson soberano
Rei do Ritmo, Rei da Síncopa,
Rei do Forró Suburbano,
Rei do Coco, Rei da Ginga,
O Páss’ro Paraibano.

Esse Jackson do Pandeiro
Foi primeiro e maioral
Rumou de Alagoa Grande
A sua terra natal
Veio ao Rio de Janeiro
Revelar seu cabedal.

Viva Jackson, inda minino,
Olhar cheio de ternura
Alma repleta de climas
E cantos da saracura
Pelos engenhos do brejo
Doce que nem rapadura.

Viva Jackson do Pandeiro
Filho de Flora Mourão
Pai da quebra do compasso
Sincopando no pião
Subindo e descendo o coco
Desafiando o rojão.