O mito do Poço da Panela

Texto de Toinho Castro


Arte sobre foto de Lais Castro

Para Julia Michiles, em terras de pernambuco

Quem teve notícias de Guilherme Salazar? quem soube de sua sombra a vagar pelos ermos do Poço da Panela quando aquilo lá era apenas uma campina exposta ao vento? Lembro bem, lembro bem de quando atravessou, impávido, o cruel atlântico para desaguar em terras de Pernambuco e adentrar o pequeno rio que parecia confirmar todas as profecias que ele, desde sua mais tenra infância, ouvira falar.

Ah, que a infância de Salazar ainda é um mistério que paira sobre a bancada dos mais renomados historiadores, tal qual a infância de Jesus. Envolvida em névoas densas que só deixam entrever o pai alcoólatra e a mãe trapezista e bilhetera de um circo que passava pela cidade… Dizem quem foi largado para as freiras, nos portais do claustro. Dizem que foi entregue às feras que rondavam a aldeia e por elas criado. Dizem, dizem, dizem… Mas na verdade pouco ou quase nada se sabe. Sabe-se das lendas antigas e profecias que ele certamente escutou e mal teve pernas para andar, seguiu.

Matou homens, honrou mulheres. roubou, desafiou, participou de duelos e contendas. Foi general de guerras, invadiu o oriente, o ocidente e dizem até que elaborou um terrível plano para invadir o centro da terra. Foi ele quem negociou a paz com os selenitas e abriu, por fim, os portões dos oceanos para o seu povo. 

Sei que foi esse mesmo Guilherme Salazar que, aos trapos, esquecido pela sua tripulação e pelo resto do reino, perdido em alucinações e devaneios sem fim, navegou primeiro no riacho escuro que sangrava a terra como um fio de ariadne. Inaugurou com seus olhos essas paisagens e cenários e fincou sua bandeira rasgada, desvairada, testemunha de um ocaso há muito previsto em búzios, conchas, vidros e alumínios.

Hoje há quem tema seu nome. antes do escurecer recolhem as crianças e cantam canções que as resguarda da sombra erma de Salazar. uma sopa especial protege os viajantes que precisam atravessar a colina, preparada com cominho, carne de uma ave selvagem e água do riacho. o mesmo riacho que Salazar batizou. Os homens vão e muitas vezes não voltam. Dizem que reúnem-se a Salazar em sua clareira. cantam canções que são escutadas a milhas de distância. em noites sem lua marcham pelas ruas do Poço e aguardam a guerra… A grande guerra que Guilherme Salazar viu em seus sonhos e que começaria ali, na Estrada Real do Poço. a grande guerra que assombraria sua existência, que o levou a perder-se, a morrer e a errar sobre a mesma terra encantada e amaldiçoada onde ergueu-se esta vila, marco indeterminado de uma busca que nunca cessará


Obviamente esta é uma obra de imaginação e ficção. Qualquer coincidência não passa de coincidência.