Lendário Livro | A poesia de Nonato Gurgel

Poemas de Nonato Gurgel para o Lendário Livro

Hoje perdemos um amigo, que se foi cedo demais. Que tempos terríveis esses que vivemos, de tanta perda. Nonato Gurgel era um poeta, um homem gentil, inteligente, sensível… tudo que não se pode ser nesse país embrutecido. Ser quem era fazia dele uma revolução. Escrever era seu ato de resistência. Escrever, ensinar, falar de um livro inesperado, representar tão bem sua cidade, Caraúbas, neste mundo.

Recordo demais o dia em que Numa Ciro falou de você, Nonato, de chamá-lo para participar do nosso Lendário Livro. Nunca esquecerei disso. Recordo também de eu e Aderaldo Luciano estarmos na Carioca, no nosso templo, e nos perguntarmos… Rapaz, cadê Nonato?!

Cadê você, Nonato? que falta fará Nonato e suas chamadas pelo messenger, para propor textos para a Revista. Nossa, que vazio na Kuruma’tá. Preenchê-lo, em honra a você, com mais poesia, com mais amor contra o ódio que parece reinante.

Não sei se você nos ouve, mas obrigado, Nonato. Por ser poeta e amigo.

Revista Kuruma’tá


TRECHO DO PREFÁCIO DE HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA PARA O LENDÁRIO LIVRO

Na sequência, leio um dos melhores poetas de hoje em dia, Nonato Gurgel. Vem de Caraúbas, Rio Grande do Norte. Com ele, o Nordeste corre em outra direção. A paixão, aqui, é o sertão. Um sertão todo seu, já presente em outro livro de poemas que escreveu, o miniSertão. Sobre essa poesia, escrevi:

Nonato se espanta com pequeníssimas micropartículas de um enorme sertão vivido, sonhado, lido, lembrado. Recados. As vozes intuídas de Machado, Clarice, Euclides, Guimarães, Guimarães, Guimarães. Conversas todas urgentes. Releio. Sinto um prazer enorme em me deixar submergir num deserto mar de mitos, terra, livros, modernidade. O sertão moderno, visceral sempre. Esse é o Nonato, poeta que leio, que tanto admiro. Sua dicção poética lida em seu conjunto, ecoa, em certo viés, pelo menos assim o leio, o sonho da precisão de outro nordestino que não cansamos de reler, o megapoeta João Cabral. Aqui, nos dá uma chave de leitura, nestes versos dedicados à Numa Ciro: “Sertões do Ceará, 1858 / Depois daquela mulher / decidi falar com cactos.”

Sem intermediação, o poeta fala com os silêncios do sertão. Suas emoções, seus amores e desejos pertencem àquela paisagem e se integram

na encosta
coração firme
na imobilidade do campo
onde amor rola e chama
cães e outros vícios

O que é mais interessante na poética de Nonato, além de sua dicção esculpida na pedra, é uma ideia contínua de retorno, de recomeço, como a idade do sertão que se faz e refaz, ou de seu desejo de retorno ao sertão. Como dizem os versos:

Adoro reler esse evangelho:
existe o recomeçar humano
sempre só como nas Noites
de Flores de Cabíria do Sertão

É muito curioso observar como a Bíblia e os evangelhos (ou sua épica trágica) aparecem com grande frequência não só na poesia, como também na ficção nordestina. É o sentimento de saga, de destino, de retorno que vejo tantas vezes explícito ou subliminar nos textos e metáforas de seus autores. Sinto como um narrar redondo que vem, recua e se desfaz. Como a eternidade que o sertão sugere. Dou a palavra para Nonato, amigo e poeta de longa data:


NONADA

Aqui
na encosta
coração firme
na imobilidade do campo
onde amor rola e chama
cães e outros vícios
este homem
calmo
experimentado pelas vacas
que mastigam o obscuro
e assumem o seu crime
foi tomado pela alegria
depois de romper
o escuro mole
feito de bichos
que se movem

Tomado pela alegria
depois de mastigar
as vacas obscuras
ele viu
que algo acresce
reverdece ou se faz
toda vez que ele
relê ou repete
o recomeço:
nonada


BAIXO BAIXADA

Sob o céu da Posse, Prometeu lê Oxossi e suas armas de caçador. Aprendiz de fogo e flecha, broto aqui meio Sebá, sedução e morte. Sob árvores do Tinguá chove. Chovo na margem que atira perdeu! Aro, ao pé do vulcão, sem erupção e só, alguma prosa verde. A margem dilata lavas, narrativas farpadas. Farpas e fogos resvalam à flor dos trilhos na estação. O vale da ferradura surta. Deságua no velho Oeste. Sangra na Dutra. Quero mais desse lero de fragas e laranjais que bancam Letras, do desabrigo que resta no “aproveitador de palavra”. O poste dá um salve para os saraus das minas e os guias afetivos da página e do terreiro. Há tempos devoramos o canibal, é certo, mas ainda não fomos modernos na Confeitaria Três Nações, no Açougue Ideal, no Armarinho União. Tarde começamos a ler as cores da alma que brota no Baixo.


INVENÇÃO DE ANTÓNIO

Sertões do Ceará, 1858
Depois daquela mulher
decidi falar com cactos
e carrapichos donde vim
cantar desertos caetés
sertões de Quixeramobim

Ergo torres em Canudos
proíbo furtos e mortes
numa dieta de culpas
e rezas prego contra
a República e acolho
escravo e bicho da mata

Pelo avesso saudoso
três raças condenso
e cindido sei de cor
o Eclesiastes por onde
o ser da terra voa
sem sair do Belo Monte


CARO EUCLIDES

Tenho saudades daquela minoria ativa
anterior a 15 de novembro…

Carta de Euclides da Cunha, 1985

Para Vivi W

Na biografia de Pedro II
escrita por José Murilo li
a dor de um cadete ao lançar
aos pés do ministro o seu sabre
e o seu amor ao Brasil que era
no fundo o amor a si mesmo

Agora eu sei meu caro senhor
além de seres órfãos “exilados”
o escritor e o imperador tinham
outras coisas em comum como
o positivismo a monarquia
as viagens e a escrita epistolar

A história registra em ambos
uma certa dificuldade ao lidar
com os afetos mais cotidianos
e um jeito de polir a aflição
lendo Hugo e rostos ao redor
anunciando luta e traição

Tudo isso sem contar
a imensa falta de sorte
que tiveram — caramba —
o imperador e o senhor
no trato com as mulheres:
a dele mancava; a sua, traía


ÚLTIMO POST P ALEXANDRA M

Adoro reler esse evangelho:
existe o recomeçar humano
sempre só como nas Noites
de Flores de Cabíria do Sertão

Com a alma cheia de barcos
e o verão no tênis agradeço
leiga em sandálias de rabicho
por dividir comigo seus heróis

e me deixar segurar na pontinha
dessa canoa que o salvou e leva
essa carioca sertaneja e amiga
de Sinhá Vitória e do deserto


DA NATUREZA DAS LENDAS

Variável como todo adjetivo
lendário quer dizer fantástico
algo do mundo da imaginação
“Imagina o Brasil ser dividido”
como o lendário Saci-Pererê
invisível mas presente

Vive o lendário Lampião
no nosso imaginário histórico
ficcional feito Zumbi
notório como Conselheiro
não viu a lendária Pasárgada
nem ouviu cantar a Yara

Além do adjetivo fabuloso
lendário é também substantivo
coleção de lendas num livro
de poetas do Nordeste no reino
vamos de viver de brisa,
Anelina, no Rio


O Lendário Livro foi editado em maio de 2018, pela Editora Rubra.

NOnanoto Gurgel, Aderaldo Luciano, Numa Ciro, Toinho Castro e Braulio Tavares
30 de maio de 2018 – Blooks Livraria – Rio de Janeiro