Poemas de ‘Entre um eco e outro’, de Angelita Guesser

Angelita Guesser chega com sua poética à Revista Kuruma’tá, com quatro poemas do seu livro Entre um eco e outro, que em pré-venda na Editora Letramento, e também um poema inédito, na voz da poeta. A poesia é sempre bem-vinda na nossa revista, ainda mais assim, com esse timbre, essa fibra. Entre um eco e outro há o que? Aparentemente o silêncio, mas também uma expectativa, se aquilo que dissemos vai perdurar, ecoando indefinidamente. Entre um eco e outro, poesia.

Toinho Castro (Editor)


#sofá_prateado

a vida é só vida, mesmo
no lugar mais íntimo do mundo
no teu largo sorriso
no nó das ideias
a vida ainda é só vida

e quanto mais busco vida
percebo sem cair em amor
a morte vestida de luz opaca
a nudez do descaso e
a conclusão de que escrever
é um ato relutante
de que a vida é só vida

percebo em instantes tão pequenos
mesmo que cante a própria música
no infinito da noite sem limite
no sol que nasce sabe-se
por qual caminho
que a vida é só vida

e assim enquanto o loirinho
se esconde na borda do sofá prateado
e inspira esse momento
percebo lá no fundo
que a minha vida é feita de vida


#palavras

carregue-me em teu corpo
tatuada feito paixão.
essa pele toda que contorna
e abraça cada molécula tua, sou eu.
carregue-me em teu corpo,
tatuada feito mapa que
segue as curvas em estrada reta.
curvas inesperadas, que oscilam
feito respiração que busca redenção.
carregue-me em teu peito,
feito canção esquecida.
feito certeza que não falha.
fica em mim, assim como
os pedaços que remontam
meu atordoado coração.


#paisagem

percebo através do vidro
abafado pelo vapor da chuva
os telhados verdes
dos musgos que se formaram
através do tempo,

dos dias
que sem piedade
corromperam sua beleza.

no escuro da tarde de outono
formou um horizonte
de tristezas e lamentos
que aos poucos abraçaram
o pobre coração solitário.

por dentre as estruturas
circundantes
que furtaram da alma
os privilégios da liberdade,

escreve-se a trajetória
que começou com a chuva.

trajetória de resgate
de um tempo onde
os telhados ainda brilhavam
com os primeiros raios de sol
e serviam de espelhos
para os sonhos
daquelas que apenas
confiavam na beleza
de uma vida que
reverenciava um simples
amanhecer.


#mesmo_nome

dei-te a vida em meu ventre,
e foi para que visse o meu mundo,
e assim te fiz amor.

dei-te asas em meu sonho
para que pudesse desvendar
o infinito da dor,
e conseguisse
tocar a última gota
do orvalho no amanhecer
cintilante de uma escura noite.

dei-te o amor,
e desfolhei cuidadosamente
as dobras do tempo
para que fugisse da
ilusão da perfeição.

dei-te minha vida
para donos sermos
da nossa própria obra
de silêncio, perplexo,

e ali ficamos, cegos
à procura da escuridão
traçada por nossos enganos,
amando apenas
as duras linhas
de uma vida sem
perdão.

 

“Adquiri o hábito da escrita através da transcrição das sessões de psicoterapia em que trabalho por mais de 18 anos. Desenvolvo meu lado artístico através das palavras e dos desenhos.”


Poema inédito

ELA

Os barulhos que estão em mim, não são meus, são da noite. Um inseto que anda e respira aqui dentro. O arrastar do chinelo na biblioteca, esse barulho é dela e está em todo lugar. O movimento das asas de cada mar que carrega o grito de lamento, sobretudo, o barulho aqui dentro, não são meus, são dela. O eco do pregar do martelo, e ainda, o arrancar do parafuso que segura o sossego lá dentro da madeira. Ah! esses também não são meus, são dela. O vidro que ofusca a claridade das raspas de gelo, me abre e rasga a carne. O que dói primeiro? Amar sem amar ou nunca amar? O rugido dos leões, o pedalar da bicicleta na areia movediça, ou dedicar a vida inteira em rezas para que o corpo tome fôlego e sobreviva ao frio dos teus olhos, esses barulhos atordoantes, certamente são dela e não meus. Qual é o barulho da certeza que não vale um poema? Os pensamentos já velhos, revestem o instante, e a diferença entre vigiar e passar os dias olhando, se esvai junto com ela. Quero sentir o silêncio entre estrondos, ser refém que não espera resgate. Quero sentir o vento que carrega as folhas no outono, e desprende da noite o barulho da solidão, que refletida pela lua, é o leito que sempre volta.