+ POEMAS DO TESSERATO | CALÍ BOREAZ Revista Kuruma'tá, 28 de agosto de 202010 de março de 2021 Poemas de Calí Boreaz balada dos vadios quadridimensionais estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar : na visão do pássaro a passar entre os fios da fiação-elétrica-sobre-azul: na janela do 8º andar por onde cai lentamente alguém — em forma de nada: no momento em que uma cor se apaga e outra se acende no semáforo: no vidro a emudecer o frenesim do lançamento na livraria-café: na fé quanto à necessária inutilidade de toda a poesia ali contidana medida em que ela éo contributo humano à infinitude do mundo — e para que serveo infinito eu estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar : na intermitânsia do letreiro a anunciar o café curativo da ansiedade: na busca alheia do gesto que livre a palavra do livro: no suave compadrio entre o que arde em cada coisa da cidade: na cidade como arte do encontro de linhas geométricas mas não de gente: na tampa do esgoto que não explode pouco antes que eu pise nela: no fogo a comer a outra parte da cidade enquanto esta sofre de esgotamento tampado, enquanto eu continuo muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar : na rasteira balística dos bilhões de sapatos ritmados a desarrumarem-se rumos: na consciência da carteira vazia de notas e moedas e mesmo do que as precede: na súbita e esmagadora surgência de um prédio abandonado: na súbita e esmagadora percepção da beleza que há num prédio abandonado: no que há de súbito e esmagador em perceber que no abandono assim muito assumido nos livramos de quase tudo e quase nada nos falta,só um pouco de ar, e por isso é que eu ainda estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar atenta, a ver se a aresta-âmago a-que-brilha pára de frente pra mimparece simples mas estou há oito mil anos nesta vã guardae depois não sei — penso que brilharei e esmerilharei todas as formasda levezae da inutilidade inauguraispenso que até sou capaz de pular carnavais (outra vez)assim como quem se expande a partir de um 8º andarlevando consigo os pássaros os semáforosos estilhaços dos vidros — e da poesiaas tampas dos esgotos pelo are os passos dos funâmbulos finalmentea desabare os fogos todos soltosa confiarem-se as danças dos grandes vazios dos grandes lugareso café os livros o poder de comprarecalculadamentea brincarem de avoar com as criançasah, depois não sei — penso que a cidade toda será não o chroma key do artista masa carótida das profundas crianças que nada sabem da língua esó querem o abandono da cambalhota no ar, e rire rir demasiado.o que sei é que no desmazelo poético da cidadeo hipercubo continua a girar e eu, aqui à margem de tudo,largar-me!não me posso distrairé que se não tivesse já parado, ainda podia parar.com uma vênia ao equilibristaestá tudo justificado tempografia comigo de costas a olhar a fotografia que prendi na parede última da décima primeira casa estrangeira, uma janela trans-espacial para a vista do quarto dos meus avós. num tropeço do atlântico, escorrego assim para os lados da lezíria do tejo, mais para dentro, e mais para dentro, ali onde termina o campo e principiam as tintas cítricas dos crepúsculos, e as estações frutadas, e a promessa do sumo quente das oliveiras, e de onde, tão de repente, se contempla a abundância do que precede tudo. dessa janela, ela amanhecia antes do inteiro mundo, e ela é que ligava a brisa os pólens e a cor rosa-chá da manhã, enquanto ele, de radinho baixo muito ao pé do ouvido, nem acordava (porque nunca dormia), desanoitecia. e o que sinto, aqui parada a esta janela, não é a arrebentação da saudade, e sim a breve metálica sensação de um eu-futuro a olhar-me enquadrada aqui olhando o quadro mas o que sinto, aqui parada a esta janela, não é tanto a fantástica projeção de um eu-futuro a olhar para mim-agora, e sim a longa consciência de um eu-passado — a olhar pela janela real e — sabendo que, um dia, aquela casa toda mesmo primeira seria estrangeira e aquela vida toda mesmo infinita seria enquadrada Compre aqui o livro tesserato, de Calí Boreaz A calí boreazLeituraLivroPoesiaPortugal