Texto de Toinho Castro
Hoje desci pra levar o lixo lá para o lugar do prédio em que o lixo espera, em estado fermentativo, até ser levado para o lugar onde todo o lixo do mundo se acumula e nos espera. Na verdade avança metro a metro sobre nós. Mas não é sobre isso que quero falar, e sim sobre descer as escadas desde meu terceiro andar até o térreo, de máscara, para me livrar do lixo e dar com aquele portal mágico que se tornou a porta da rua do nosso prédio. Lá estava ela, fechada, com seus vidros transparentes, através dos quais eu via a rua. Lá estava a rua, como se nada devastadoramente inesperado tivesse acontecido em 2020, como se esses cinco ou seis meses. Como se lá fora não houvesse mais de cem mil vidas a menos, mais de cem mil círculos de famílias e amigos mergulhados na tristeza da perda.
Já havia me livrado do lixo e fiquei ali contemplando brevemente a porta da rua fechada. Enfim caminhei até ela e a abri. Senti a brisa delicada de 23º, resquício da frente fria que já nos abandona ao sabor da primavera que se achega na cidade. Nem um mês inteiro falta. Deixei a porta entreaberta e desci os degraus até o portão e, finalmente, a calçada. A rua. Por um milésimo de centésimo de um lapso de segundo, senti como na Imbiribeira, 40 anos atrás. O corpo noturno do mundo. Lá na esquina, o bar aberto, iluminado, e com algumas pessoas a conversar na calçada. Mas eu não escutava o que elas diziam e os automóveis na via principal pareciam passar em silêncio, o silêncio de filme mudo que se espalhava pelas coisas. Lembrei de um texto de Jorge Luis Borges, do qual sempre lembro, chamado Sentir-se em morte, em que ele rememora a experiência de, numa caminhada a esmo, chegar a essa rua remota, de casas baixas. Nenhuma casa se aventurava à rua; a figueira escurecia a esquina; os portõezinhos – mais altos que as alongadas linhas das paredes – pareciam trabalhados com a mesma substância infinita da noite. — Ele escreve.
Todo aquele cenário se apresenta tão antigo e, simultaneamente, tão deslocado do tempo, que bem poderia ser mil oitocentos e tantos. O fácil pensamento Estou em mil oitocentos e tantos deixou de ser algumas poucas aproximativas palavras para entranhar-se em realidade. Senti-me morto, senti-me um percebedor abstrato do mundo. Recordei também de um poema de Allen Ginsberg, no qual encontramos o verso, na tradução de Claudio Willer:
Tive um lampejo de claridade, vi o sentimento no coração das coisas, saí para o jardim chorando.
São esses momentos de um limpidez que nos ocorrem num mundo turvo. Alegra-me que seja consequência de descer com o lixo, essa tarefa que se tornou árdua, cercada de protocolos que a quarentena nos impõe, e também permeada de inseguranças. Mas foi esse fio que eu puxei e que me levou à rua, enquanto atrás de mim deixava um outro fio, um fio de prata, que dizem prender o espírito ao corpo quando esse se aventura nos territórios dos sonhos ou nas viagens astrais. E foi assim que, como um antigo astronauta preso a nave, flutuando sobre os destroços do mundo, eu vi a Lua, com seu disco incompleto, brilhando tanto no céu sem nuvens. Há quanto tempo não a via, ainda mais assim tão nítida. Da minha janela tenho meu quadrante de céu, uma faixa estreita, delimitada por prédios. Em certos períodos do ano posso contempla-la da minha janela, mas nos últimos tempos ela andava sumida. Porque tudo gira… a Terra gira, em torno do seu eixo inclinado, a Lua gira, arrodeia a Terra e ambas se lançam em torno do sol, numa dança contínua de mútua influência que define as estações do ano, as marés, as corrente submarinas, o movimento nem sempre sutil das placas tectônicas… eventualmente tudo findará, com o sol consumindo seu combustível final e se expandindo para engolir as órbitas de Mercúrio, Terra e Marte, num evento tão grandioso quem nem nos será dado participar, mínimos que somos.
Bem ao lado da Lua havia algo que muitos diriam ser uma estrela, e que eu sabia ser Júpiter, porque leio esse tipo de coisa, porque nunca se sabe quando podemos precisar de uma informação assim. E veja só, eu estava justamente diante de um momento como esse. Lá estava eu e lá estava Júpiter, bem ao lado da Lua, e eu sabia.
Bem ao lado da Lua é modo de dizer, pois sabemos o quanto essas relações são ilusórias. O gigante gasoso, que de tão grande e massivo por pouco não se tornou um sol, dista quase cinco anos de viagem desde a Terra. Enquanto a Lua está logo ali. Na falta de gravidade em que me sentia, pensei que poderia nadar até lá de braçadas, arrastando atrás de mim, pesada, a minha cápsula, presa ao meu escafandro pelo fio de prata. Carregando comigo Raquel, os gatos, nossos livros e discos, as mudas de limão doce… rumo a Lua, sabendo que não há estrelas no caminho, porque elas estão bem além, muito além de Júpiter e suas família de outras luas, e seus anéis. Sim, Júpiter tem anéis. E esses pensamentos, comigo ali, de pé na calçada do prédio, no silêncio primordial da rua, um silêncio que estava me esperando desde eras priscas… por quanto tempo revoaram esses pensamentos na minha cabeça? Dois minutos? Cinco?
Ainda enevoado recolhi meu meu fio de prato rumo ao interior da minha nave-mãe. Fechei a escotilha e olhei uma última vez para a rua e para o imenso céu sobre ela. Esse céu que nada sabe sobre nós e nossa desventura quarentênica. Subi as escadas e o lixo ficou para trás também, a ser recolhido logo pela manhã. vamos deixando tudo para trás… a rua, as noites, o lixo, enquanto avançamos sem rumo, nos afastando velozmente daquele ponto indizível, concentrado, mínimo, de onde tudo explodiu e expandiu preenchendo esse conceito estranho chamado Nada, em que demos por existir, seja lá o que for a existência.
Já em casa, no calor dos meus, escrevi esse texto, a ser publicado sem data, mas com uma data de expiração. Quando o Sol em suas últimas convulsões de energia, varrer do universo isso tudo que seguimos deixando para trás. Há de restar uma enorme nuvem de gás e poeira, que há de ser berço de algo futuro. Há de restar uma nave ou outro prodígio a carregar algo que sobre de nós. Ou mesmo a terra estará atravessando a escuridão do cosmo em busca de outro lar. Tem um livro sobre isso, do escritor chinês Liu Cixin sobre isso, e um filme também, inspirado no livro! Recomendo… ainda temos um mundo para viver.