Playlist III

Observações musicais de Aderaldo Luciano

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Não penseis vós que eu sou sombrio, que busco as escuridões, os subterrâneos, as tocas, as grutas e grotas por onde a luz do sol não ousa. Não. Sou um dançarino pelas ruas aziagas, sou um pingo no sobrado avoengo, sou um glúteo espontâneo desligado do samsara, vou descendo a ladeira em desabalada carreira. Lá embaixo estarei entre os sete e estaremos à frente da dança eterna, do ritmo mais elétrico em gritos e aleluias à vida. Vem.


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Fui com Marlui até o pé de pitanga. Toda a pitangueira tem perfume. A pitanga é uma fruta pequena, com polpa rara e semente profusa. Não como a pitomba, cujo caroço atende por quase toda fruta. O cheiro e o sabor da pitanga é o amor que deixa rastros. As folhas da pitangueira, maceradas, incendeiam as narinas e expandem os pulmões. O amor de pitanga se propaga quanto mais pilado, quanto mais sangrado. Que maneira de amar!!!


13

O cheiro do cajá espalhou-se pela vizinhança da casa. Desde que me entendo por gente, quando pude ver o céu como um ventre, esse cheiro era esperado todos os anos. A casca grossa da cajazeira, as raízes brotando acima do solo revolvendo a terra eram uma parábola sobre o colo de minha mãe, Dona Mocinha. Minha mãe é a terra, minha mãe é a floresta, minha mãe é a cajazeira frondosa, minha mãe é. A trilha sonora de minha mãe é Nazaré. Pereira.


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Madrugada em Santiago de Cuba, silêncio total. Nus, acendemos um Cohiba numa brasa da fogueira, demos baforadas, observamos a fumaça cortando desenhos contra a lua. Pensei nos mártires, pensei nos que lutam. Ela me perguntou se um dia eu voltaria a ilha. Lhe respondi que o futuro é descontrolado e que o fogo tem prazo de validade. Aproveitamos o fogo. Aproveitamos a brasa. Fumamos até ficarmos cinzas. Na ilha, o sol nasce e se põe sem sair de sobre nós.


15

Essa minha alma que partiu de ontem. Essa minha alma que chegou-me assim. Assim como a herança destinada por quem não conhecemos, um antepassado que nunca falou aos nossos corpos. Fui derramado, ainda sonho, no corpo quase infantil da moça brejeira, doce e sem maldade. Cruzei estradas apenas embrião. Arrastei correntes, ainda microgente. Quando abri os olhos, via Alim Qasimov. Ouvi a melodia. Era um lamento de interrogações. O agradecimento diante da imensidão.