Sonho, Lama & Caos

Texto de Toinho Castro

Para Beval Freitas


Hoje sonhei que o Pete Townshend dava a seguinte declaração sobre o Who:
The Who é como um parque de diversões. você liga os brinquedos e lá está a música.

No sonho eu citava essa declaração para o Kleber, enquanto explorávamos um manguezal que restava perto do Shopping Recife, num cenário dos anos 90, muito diferente de como deve estar hoje, depois da via mangue e ocupação imobiliária daquele trecho da rua Antonio Falcão, que leva da Imbiribeira até a praia.

Toda a área do Shopping Center Recife, e seu entorno, era um manguezal. Lembro que havia um cano, uma tubulação, que cruzava parte do mangue e era caminho da meninada aventureira para a praia. atravessar pelo cano era um rito de passagem… foi tudo aterrado e testemunhei boa parte desse processo, que é, essencialmente, um processo de perda. em múltiplos sentidos.

Perdemos o mangue, perdemos a aventura do cano, perdemos essa sensação de transição até a praia. hoje é prédio, prédio, prédio e de repente, praia. Antes havia uma espécie de desconstrução até chegar na praia, mesmo considerando os prédios da orla. parece bobagem, e é bobagem, e falta-nos bobagem. Bobagem é coisa séria.

Acostumados que somos a dar sentido às coisas, ponho-me a pensar sobre os possíveis significados desse sonho, eu e Kleber com os pés enterrados na lama do mangue até a canela, conversando sobre uma declaração do Pete Towshend. Talvez fale do cosmopolitismo daqueles manguezais, das antenas enfiadas na lama, atentas ao mundo apesar de estar naquela Recife dos anos 80 e 90, ou talvez dar sentido a um sonho assim seja somente um péssimo hábito que precisamos combater. E seja, ao fim, somente isso, eu, Kleber, Pete Towshend e o manguezal. E isso não é pouco.

De súbito, enquanto escrevo essas linhas, já pensando em finalizá-las, recordo de uma ideia subjacente na minha infância no Recife, de que o mangue era sujo, era lama, algo para ser limpo. Uma ferida aberta na cidade. Impressionante como a ideia de limpeza pode ser poderosa, colonizadora e contaminante. Talvez seja a principal ideia que move a força branca, conservadora e masculina sobre a terra: a limpeza. Do mundo, do corpo, da alma. Porque é tudo sujo. Aterrar o mangue, substituir o caos das florestas pela organização das plantações. O mundo enquanto porcelanato.

Dito isto, recordo certa vez que entrei na livro 7 e dei de cara com esse livro, do poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, ilustrado com as fotografias de Maureen Bisilliat (Meu amigo Roberval vai lembrar desse livro). Aquelas impressionantes fotos das crianças se refestelando na lama do Capibaribe. Quanta liberdade, que frescor… me vieram à mente as imagens dos elefantes deitando na lama, para dissipar o calor africano.

“Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.”

(de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto)

Fomos nos afastando, nos afastando da lama do mangue. Aterrando, fazendo ruas, asfaltando as ruas, construindo, construindo prédios. Hoje os prédios nem tem mais apartamentos no térreo. No térreo ficam as portarias, e acima das portarias, dois ou três andares de garagens, e só então as casas, evitando o mundo. Todos na torcida para que o mundo seja límpido, branco, imaculado, revestido, recoberto, sem compreender que o mundo é detrito, resto de uma grande e primordial explosão que se dissipa universo afora. O universo é uma onda de choque que desarruma. A mecânica celeste é ilusória.

Pode ser que seja uma memória falsa, fabricada, mas lembro de minha mãe me dizer que na primeira vez em que ela foi morar na nossa rua, na Imbiribeira, a rua era estreita, com uma casinha aqui e outra ali, margeada ainda por terrenos baldios e manguezais. Sempre imagino essa cena como noturna, com as janelas dispersas emanando a luminosidade parca e amarela das velhas lâmpadas incandescentes. Um mundo espectral.

assistíamos tv
e o caranguejo
atravessou a sala,
deixando em todos a sensação
de que estávamos errados,
que ocupávamos
um espaço indevido,
que éramos bandidos,
ladrões, saqueadores de mundos.
assentamos nossa morada
numa rota de migração,
no caminho lúdico
para a toca da namorada.
era um fóssil,
o caranguejo das eras
que jaziam sob o assoalho,
testemunha do mangue
que minava ainda
as fundações do edifício inês.
pergunto-me o que ali ele enxergava
se as paredes,
o brilho azul da tela
ou o que lhe ditava a memória,
a terra negra, úmida,
o emaranhado de galhos
e raízes, as folhas pendentes
e seus pares,
à meia-luz noturna da lua.
éramos então os fantasmas,
o futuro irreconhecível.
habitávamos épocas distintas
e nos encontramos
num lapso, num vértice,
numa falha narrativa
nas nossas vidas mínimas.”

(de Toinho Castro, em Lendário livro)

Tudo foi sendo empurrado “para fora” da órbita civilizada, até que do mangue restou um canal, convertido em esgoto a céu aberto. Tal é a noção de mundo que temos. Isso a que chamamos de civilização é uma camada mal posta de cal, tóxica e aniquilante, mas mais para quem está acima dela. Embaixo, a vida ferve, fermenta, erode, consome, pronta a irromper convulsionada.

“O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.”

(de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto)