A poesia de Milena Martins Moura Revista Kuruma'tá, 28 de dezembro de 202011 de março de 2021 Sim, a poesia de Milena Martins Moura está na Kuruma’tá, na última segunda-feira do ano. E é com a poesia de Milena que encerramos 2020 e preparamos nossos corações e mentes para 2021! Uma poesia vigorosa e precisa, em que cada verso adensa o outro. Que coisa boa ter essa poesia aqui com a gente, no fim desse ano estranho. Sem mais, deixo vocês com o universo particular de Milena Martins Moura, enquanto escoam os dias e horas de 2020. 1. É só um rosto com veias aparentes. Com medos pulsando na testa. Eu sou um rosto E um corpo preso a ele, Com músculos que tremem E um cobertor de pele E pelos. Eu tenho roxos que não sei como. E dores que não sei como. Meus pés já acordam doídos de andar. Eu sou um rosto. Com dentes em demasia. Eu sou também os dentes e o que mordem Para manter meu status De coisa viva. Eu sou um rosto pálido Manchado de verde escuro Que hoje não quer sorrir. 2. É dar corda Pra me enforcar Mas eu ainda me levanto Com gritos no ouvido. Você precisa costurar meus braços Antes que me esqueça. Eu ainda escovo os dentes Com gritos no ouvido. Você precisa me bordar os olhos Antes que me esqueça. Eu ainda como torradas Com gritos no ouvido. Você precisa rechear meu tronco e me fechar as costas Antes que me esqueça. Antes que esqueça a minha forma E a história Que eu assombrei na sua noite. Me brote de azul nessa folha Feita apenas para me servir de berço. Faça-me viva Assim, bem cedo, Que é quando convém nascer. Depois você pode esquecer a louça na pia E o sentido de existir em sofrimento. Mas primeiro eu quero sujar esse quarto Com o sangue do meu nascimento. É dar corda Pra me enforcar Mas eu ainda escrevo Com gritos no ouvido. 3. Alguém precisa dizer pra essa criança Parar de cavar. O Japão só está ao alcance das mãos De quem tem grana Pra comprar passagem. Melhor avisar também, Bem cedo, De menino, Que ser astronauta é difícil, Principalmente quando se nasce no Brasil De mãe pobre Sem saber inglês. Aliás, diga-se a verdade, Bem pouca gente nesse mundo Realiza sonho. Deixe que ele saiba antes que cresça, Pra doer menos. Na adulteza, todos os dias São bem parecidos, Mesmo ônibus, mesma multidão, Mesma pressa, mesmas tarefas. No aniversário só tem bolo Se comprar E, se cai na semana, Tem esporro de chefe E almoço protocolar da firma. Espera-se loucamente pelo sábado E nele lava-se a roupa e limpa-se a casa. E o fim de semana dura dois minutos E um porre de vinho barato. Pisca-se o olho e passam dez anos. Ganha-se ruga, peito caído e doença. E as lendas mudam de papai noel pra corrente alarmista. Os filhos dão despesa e um pouco de desgosto Como vingança por os termos tacado aqui À revelia. E em dois dias já estão fora de casa, Passando a diante a maldição. Basicamente, Carmen, pare essa criança agora. Se continuar nessa cavação, Capaz de descobrir que o Pitoco Nunca foi morar em fazenda. 4. A poesia Abandonei atrás de um móvel pesado Numa empresa pesada Em um dia ruim. Larguei de lado também Sonhos, pessoas e quilos. A qualidade de não tremer de medo Por estar no mundo E ao som do meu nome. E, é claro, Um corpo jovem e sem dores. E a poesia ficou jogada no escuro Sem quem a cuidasse. Não foi sempre assim. Houve dia de deixar O poema À luz solar direta Em ambiente arejado. A poesia a que me jogo agora Não é aquela De concreto velho E livro de sebo Riscado por outros Que vieram antes de mim. Aquela morreu sufocada Pela necessidade evolutiva Do alimento Que obriga a vende a vida. A poesia a que me entrego Tem lembranças demais, Como matriarca de família grande À beira da morte. Ela me trouxe hoje O cheiro do concreto Misturado a um perfume azul Em dedos de gente querida. Ela hoje me fez lamentar Que tempo não se possa Estocar para o inverno, Como cereais num galpão. Para comer Quando o estômago Roncar de velho. 5. Eu escrevo poesia Desde 1996. Sim, eu era só uma criança. Que fazia escolhas ruins. Cortavam as minhas asas Para servir no jantar. Doía. E, passiva, eu dava o meu futuro Em sacrifício. Éramos pobres. Não se sonha com fome. Um dia as asas não cresceram. Ninguém estava esperando. Eu havia desistido. Só me sobraram a caneta e o papel E, pra aplacar a fome, Eu escrevi sobre roseiras E muitas outras coisas que eu nunca tinha visto. Foi preciso caçar outro alimento. Pela palavra eu possuí a minha carne E desde então ela é só minha Pra morder. Milena Martins Moura é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora dos livros Promessa Vazia (2011) e Os Oráculos dos meus Óculos (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018), disponível para streaming. Publica poemas, fotografias e pinturas no perfil de Instagram @oraculos_dos_oculos. A Destaque 01LeituraMilena MartinsPoesia