Com gritos no ouvido.
Antes que me esqueça.
Com gritos no ouvido.
Antes que me esqueça.
Com gritos no ouvido.
Antes que me esqueça.
Que eu assombrei na sua noite.
Feita apenas para me servir de berço.
Que é quando convém nascer.
E o sentido de existir em sofrimento.
Com o sangue do meu nascimento.
Com gritos no ouvido.
Alguém precisa dizer pra essa criança
Parar de cavar.
O Japão só está ao alcance das mãos
De quem tem grana
Pra comprar passagem.
Melhor avisar também,
Bem cedo,
De menino,
Que ser astronauta é difícil,
Principalmente quando se nasce no Brasil
De mãe pobre
Sem saber inglês.
Aliás, diga-se a verdade,
Bem pouca gente nesse mundo
Realiza sonho.
Deixe que ele saiba antes que cresça,
Pra doer menos.
Na adulteza, todos os dias
São bem parecidos,
Mesmo ônibus, mesma multidão,
Mesma pressa, mesmas tarefas.
No aniversário só tem bolo
Se comprar
E, se cai na semana,
Tem esporro de chefe
E almoço protocolar da firma.
Espera-se loucamente pelo sábado
E nele lava-se a roupa e limpa-se a casa.
E o fim de semana dura dois minutos
E um porre de vinho barato.
Pisca-se o olho e passam dez anos.
Ganha-se ruga, peito caído e doença.
E as lendas mudam de papai noel pra corrente alarmista.
Os filhos dão despesa e um pouco de desgosto
Como vingança por os termos tacado aqui
À revelia.
E em dois dias já estão fora de casa,
Passando a diante a maldição.
Basicamente, Carmen, pare essa criança agora.
Se continuar nessa cavação,
Capaz de descobrir que o Pitoco
Nunca foi morar em fazenda.
4.
A poesia
Abandonei atrás de um móvel pesado
Numa empresa pesada
Em um dia ruim.
Larguei de lado também
Sonhos, pessoas e quilos.
A qualidade de não tremer de medo
Por estar no mundo
E ao som do meu nome.
E, é claro,
Um corpo jovem e sem dores.
E a poesia ficou jogada no escuro
Sem quem a cuidasse.
Não foi sempre assim.
Houve dia de deixar
O poema
À luz solar direta
Em ambiente arejado.
A poesia a que me jogo agora
Não é aquela
De concreto velho
E livro de sebo
Riscado por outros
Que vieram antes de mim.
Aquela morreu sufocada
Pela necessidade evolutiva
Do alimento
Que obriga a vende a vida.
A poesia a que me entrego
Tem lembranças demais,
Como matriarca de família grande
À beira da morte.
Ela me trouxe hoje
O cheiro do concreto
Misturado a um perfume azul
Em dedos de gente querida.
Ela hoje me fez lamentar
Que tempo não se possa
Estocar para o inverno,
Como cereais num galpão.
Para comer
Quando o estômago
Roncar de velho.
5.
Eu escrevo poesia
Desde 1996.
Sim, eu era só uma criança.
Que fazia escolhas ruins.
Cortavam as minhas asas
Para servir no jantar.
Doía.
E, passiva, eu dava o meu futuro
Em sacrifício.
Éramos pobres.
Não se sonha com fome.
Um dia as asas não cresceram.
Ninguém estava esperando.
Eu havia desistido.
Só me sobraram a caneta e o papel
E, pra aplacar a fome,
Eu escrevi sobre roseiras
E muitas outras coisas que eu nunca tinha visto.
Foi preciso caçar outro alimento.
Pela palavra eu possuí a minha carne
E desde então ela é só minha
Pra morder.
Que poma divino! Intenso e real! Humano! Doce. Familiar.