Texto de Toinho Castro
Talvez seja esse um comentário tardio sobre o livro O peso do pássaro morto (Lançado em 2017 pela brava Editora Nós, da Simone Paulino), de Aline Bei. Mas acontece que demorei a chegar até ele. Sou daqueles leitores que compra um livro e não o lê imediatamente. Deixo ele lá na estante, ou na Nuvem, no caso de um e-book. Muito se falou das qualidades desse primeiro romance da Aline. Falou-se muito bem do livro, e fiquei com um olho nele, dormindo ali no meu Kindle; potencial, algorítmico. Mas o livro dormia um sono agitado, porque estava a me chamar. Até que vi a história da lista de livros que foi censurada e lá estava O peso do pássaro morto. “Chegou a hora de ler essas páginas”, pensei. Se o governo censurou, vamos ler!
O livro é uma vida. Uma vida narrada em primeira pessoa, dos 8 aos 52 anos. Quem lê é quem vive essa passagem de tempo, esse sucessivo encolher e expandir-se. É a vida de uma mulher. Bem poderia ser na primeira pessoa do plural, porque encontrei tantas mulheres nesse livro, tantos enfrentamentos que reconheço na vida das mulheres que conheço. Ao mesmo tempo a dor compartilhada, humana, que transcende gêneros, fronteiras, paredes.
Lá no começo eu falei em primeiro romance. É o que todos dizem, no release, nos ótimos artigos e críticas sobre o livro. Para mim é um longo poema. Um longo poema sobre a dor, sobre a morte, verdades incômodas e incontornáveis. E quanta propriedade nessa narrativa, quanto pertencimento… o que produz uma leitura em que dói e alivia. E dói de novo e nos deixa em suspensão… Com um Não é possível! preso na garganta.
O livro de Aline nos desafia a cada palavra. O livro de uma vida. Mas o que é a vida? Um tapa na cara? A maternidade? O distanciamento? O emprego ou o sonho? Ou a morte? A vida é a sucessão, ilusória, talvez, dos fatos que ocorrem a alguém? Ou o labirinto interior, onde esses mesmos fatos se embaralham, se sobrepõem e se conectam a outros, profundos, que muitas vezes escapam à vista? É nisso tudo que pensei enquanto percorri as páginas, a vida, os dias, de uma mulher sem nome, de mãos dadas com ela. Por vezes sentindo suas unhas se cravarem na palma da minha mão. O que isso significa? Aprendi nessas páginas de Aline Bei que sei pouco.
Essa mulher que vi crescer sob as nuvens, sob as circunstâncias de uma vida sem perspectiva, sob a presença da morte e da vida (O que é a vida?) se insinuando em coisas muito pequenas. Essa mulher me ensina a perguntar quem somos, diante disso tudo que vivemos.
Não quero dar spoiler, nem analisar ou me alongar uma crítica. Sou um leitor diante do livro, da beleza de um livro, ainda buscando uma voz para falar dele. Terminei um livro sobre um vida e fiquei pensando na morte. Uma de suas passagens me lembrou de um trecho do poema do Allen Ginsberg, chamado Relato de um sonho: Junho, 1955, do livro Sanduíches de realidade, que consta da edição Uivo e outros poemas, da LP&M. Ele escreveu o poema depois de sonhar com Joan Burroughs, que havia morrido tragicamente, em 1950:
Então soube que
ela era um sonho: e perguntei-lhe
— Joan, que espécie de sabedoria
têm os mortos? você ainda pode amar
suas amizades mortais?
O que você lembra de nós?
Deixo vocês aqui com essa mesma interrogação. Deixo vocês com o livro de Aline Bei. O peso do pássaro morto é desses livro para ler e reler, para atravessar com prazer e assombro. Que literatura boa a dela, que deixa a gente com tanto pensamentos na cabeça, com tantas questões e anseios. Um livro que te diz: Estamos vivos! E o que é a vida?
Um livro e uma autora muito queridos. Concordo, Toinho. É um longo poema.