A aldeia, a água serenada, as estrelas e o zum zum zum, com Déa Trancoso

Texto de Aderaldo Luciano


1.

Essa alma de Déa Trancoso é de sopro. A aragem de sua voz é o respiro. O tum tum tum do coração avança e retorna, ameaça e se acalma. Mundo difícil esse, mundo esquisito esse, mas o caminho desenhado por Déa não é cataclismático. Há um sistema filosófico iniciado no fundo do rio, subido à terra, penetrado à mata, diluído à alma. O encontro das menores partículas universais com o infinito misterioso e desconhecido. Linda luz como fogo ao vidro. A cobra coral de Seu Tupinambá.

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Seu Tupinambá
Quando vem na aldeia
Ele traz na cinta
Uma cobra coral
Oi’é uma cobra coral.

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2.

Fui nascido, criado e iniciado nas artes naturais, no olhar e na entrega à Natureza como fonte de cura e crescimento interior. Durante 21 dias, com intervalo de 3 dias entre cada 7 dias, minha mãe, dona Mocinha, atenta, me oferecia água serenada quando sentia sobre mim alguma energia reversa. Tenho ouvido Déa Trancoso como quem prepara esse ritual. Na canção-testemunho Água Serenada, do poderoso álbum Serendipity, mergulhei em minhas memórias. Talvez dona Mocinha estivesse me preparando para ouvir tão bela vereda músico-natural. Essa minina Déa nos oferece água serenada. Os elementais, com a Luz, entram em nosso templo e morada, corpo e caixa existencial, e nos embalam na rede fluida da Vida.

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Eu não canto
Do jeito que eu já cantei
Bebi água serenada
E até a voz eu mudei
Eu mudei
Até a voz eu mudei
Bebi água serenada
E o coração eu lavei
Eu lavei
O coração eu lavei
Bebi água serenada
Cantei em paz
Serenei
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3.

Nesses últimos meses, ouvindo Déa Trancoso, sua voz doce, sua canção pétala, sua seara pronta para a colheita, seus leirões bem adubados, entendo, por muito meditar, o quão é grandiosa a existência. Talvez eu fosse me matar um dia, mas ouvi Déa Trancoso. Talvez eu fosse ao pó uma noite, e irei, mas com o som do riacho, com o eco viajando pelas estrelas, pela canção que me atravessou. Aliás só restarão as estrelas. Quando chegar a tarde, o final da tarde, e o caminho estiver entre a penumbra e o breu, eu sei que só restarão as estrelas. Para elas seguirei. Num caminho de flores e pássaros. Como o bem-te-vi.

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Dos desejos e dos beijos
Das potências e das carências
Só restarão as estrelas

Das agruras e das paúras
Dos sabores e amargores

Só ficarão as estrelas
Só as estrelas saberão o caminho
Só as estrelas sobreviverão
Só as estrelas escaparão de fininho
Só as estrelas recomeçarão

Dos sofrimentos e dos alentos
Dos mistérios e das perguntas
Só restarão as estrelas

Das ciências e ignorâncias
Das supercordas e das lembranças
Só ficarão as estrelas

Só as estrelas saberão o caminho
Só as estrelas sobreviverão
Só as estrelas escaparão de fininho
Só as estrelas recomeçarão
Só as estrelas são as estrelas

São as estrelas diamantes no céu?
São estrelas diamantes cravejados no céu?

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4.

Corri atrás das águas e as águas me carregaram. Areia ficou para trás. Havia um poço no antigo Rio do Canto. O chamávamos Poço da Traíra. E para lá fomos no inverno, quando do rio cheio, quando das águas brabas, quando dos redemoinhos, quando dos desafios de meninos perdidos sob o céu. As águas me abraçaram. O chão de areia fugiu dos meus pés. Hoje, ouvindo o Zum Zum Zum, com Déa Trancoso e Paulo Bellinati, relembrei desse episódio delicado no Poço da Traíra. Água com Areia não se pode misturar, água vai simbora, Areia fica no lugar. O Rio me carregou pro mar e hoje é Odoyá! Ainda há pouco, a voz de Déa fez fluir toda a água que me trouxe. Sou metade água, metade Areia. No meio do mar.

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Água com areia
Não se pode misturar
Água vai simbora
Areia fica no lugar

Saravá, Rainha do Mar, Saravá!

Zum zum zum
Lá no meio do mar

Odoyá!
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