Uma carta para Manoel de Barros

Sempre, na Kuruma’tá, essa alegria de receber colaborações espontâneas de gente de todo o Brasil. Hoje abrimos nosso espaço para o escritor, professor universitário e jornalista Alessandro José Padin Ferreira, que nos traz uma bela crônica dedicada ao poeta Manoel de Barros. Bem-vindo à Kuruma’tá, Alessandro!


Crônica de Alessandro José Padin Ferreira


Não reli nenhum dos seus poemas ontem, quando fui dormir pensando em você. Só lembro, nesta minha memória falha que erra até o Hino Nacional, que você entende o canto dos passarinhos, o dançar da terra sob os pés e a beleza de folha balançando em frente à janela, mesmo que não haja flores.

Os passarinhos daqui foram embora lá pra floresta. Aquele vermelhinho, então, nunca mais vi. A terra, coberta pelo concreto, e as flores são, como sempre, resistência. O dia não começa com o som da brisa que vem do mar, tentando acalmar as urgências da rotina. É com o som tonitruante das estacas que lembro onde estou e que tudo pode ser mais duro.

Quando escrevo, mais um caminhão dá uma freada violenta e o rugir do motor reforça minha impotência. Devo ir embora? Não sei. Estou tão cansado e andar por aí pode ser perigoso. Até o sorriso gratuito, que gosto de dar para desconhecidos embrutecidos, é censurado pela máscara que raspa minha barba e me faz sentir pequeno diante de tudo.

Deu uma vontade danada de ler um poema seu agora, para lembrar da minha humanidade e de que nem tudo são ambição e cifras. Deu uma vontade danada de dançar sob a terra, imitar os passarinhos, distribuir flores para os funcionários da obra levarem, com um pouco de ternura, para as suas amadas nos barracos da vida.

Deu uma vontade imensa de ser ridículo aos olhos de quem se acha normal, pois, nesta etapa da vida, concluo que são os ridículos que fazem tudo valer a pena. Aqueles que riem de si mesmos, que não usam guarda-chuva, que tomam café sem açúcar e que param na esquina para ver a goiabeira da infância.

Manoel, hoje é quinta-feira, dia dos Caboclos. É dia de tomar banho de ervas. Alecrim, Aniz Estrelado e outras que preciso ver lá na lista, pois sou esquecido. Acho que vou fazer isso no jardim, para não sujar muito o banheiro.

Fica bem, amigo. Prometo que hoje vou dormir lendo algum poema seu.

Um beijo.


Alessandro José Padin Ferreira é escritor, professor universitário e jornalista. Graduado em Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, pela Universidade Católica de Santos, é mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Após anos dedicados à atividade jornalística e acadêmica, retomou os estudos em linguagens poéticas, vem participando de antologias e prepara o seu primeiro livro com poemas.