Poemas de Farândola, por Maria Cristina Martins

Poemas de Maria Cristina Martins


Trazemos hoje, mais uma vez, e mais uma vez com alegria, a poesia de Maria Cristina Martins, de seu novíssimo livro Farândola.


Organizando a teimosia não como se arruma o armário, mas como quem expõe a perturbação da ordem, o ruído, o avesso, o fora de lugar, a poeta vai talhando um caminho que vai da casa à rua, do privado ao público, do pessoal ao coletivo, do amor à política. Na dupla chave do familiar-não familiar, Farândola vai criando laços que se entrecruzam em uma dança centenária que conecta a história de uma mulher com “a dança dos maltrapilhos/ a fome e a sede dos saltimbancos/ de tomar as ruas e dançar”. Indo da casa, do familiar, do doméstico, e tomando as ruas, Farândola vai se tecendo como uma aliança, nesse movimento que se desdobra e vai encontrando seus pares, dando as mãos pelo que se reconhecem em suas estranhezas, porque é a condição de estar fora de lugar, fora da ordem, que os une. Ir de mãos dadas (Drummond é um interlocutor importante neste livro) com os que vivem em precarização, os banidos da lei, como os endividados, os camelôs, os mendigos, os sem-teto, estar entre eles, no meio deles, correndo com eles, como lemos em “Estranhos”, é fazer dessa estranheza uma ética e uma política, um modo de estar no mundo, um modo de (não) se sentir em casa.

— do prefácio de Danielle Magalhães

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A casa

as oito portas da casa estão trancadas
vou contar de novo
.
.
.
são seis
as seis portas da casa estão trancadas
tenho um plano de fuga
listas espalhadas pelos cantos
a indicar o lugar correto de cada objeto
cada objeto tem de estar
no lugar que lhe é de direito
decido dormir porque:
1. sair a essa hora pode ser perigoso
2. estou com preguiça
tenho um defeito de uso
aparentemente sem conserto
a casa continua igual, enorme
ou fui eu que não cresci?

A casa II

esta casa em que vivo é esquisita à beça
por isso gostei
fica no subsolo
a sala não tem janela
a área, grande, é exatamente do tamanho da parte de dentro
na parte de dentro tem
sala, cozinha, banheiro e dois quartos
a área e a parte de dentro são paralelas entre si
a cozinha é minúscula
a parte de que mais gosto é onde estou agora
onde pousei a escrivaninha amarela
vejo um matagal
onde passarinhos às vezes dão rasantes
o sol bate em cheio nas folhas
mas aqui dentro fica fresquinho
confusa não estou por nada

A casa III

ter uma casa
ter uma casa para voltar
ter uma casa para voltar e dormir
sossegada e displicente
temer apenas monstros
embaixo da cama
ter uma casa para sempre
ter onde guardar miudezas
inúteis e aconchegantes
para sempre
ter uma casa para ficar
exceto por um casaco esquecido


Vinícius

tábomtábomtábomtábom
disse teu coração
ao que o nosso respondeu
“peixinho, dá um chutinho
dá um beijinho
uma cambalhota”

os meninos descem a rua
atrás de bolas e fantasias
e você?
voará como nosso beija-flor?
visitará florestas encantadas?
lutará pelo fim dos próprios privilégios?
protestará pelos equívocos
da humanidade decadente?
nos perdoará por tudo?
por nada?
pedirá perdão?
será feliz?
terá os olhos doces do pai?
os dentes grandes da mãe?

quem é você, vinícius?
quem seremos nós
depois de você sair do aquário?
depois que não for mais peixinho
nem minhoca nem alien
depois de nos contestar
depois de nos amar
depois de nos odiar
e voltar a nos amar

só sabemos isto:
porque tua vinda será a mais terna
e inquietante aventura
é que agora pedimos
tempo infinito


Tinta a óleo sobre papel

meus meninos dormem
frito no óleo
da tinta e do hambúrguer
mal me recordo de quando fritava
por outros meios
piso devagar no quarto
o ventilador gira no meu coração
o amor total é um espanto

sei a origem do meu susto
por entre borboletas azuis
sapos, besouros verdes e um cachorro hippie
e um cachorro preso por amar demais
e gangues de pássaros, beija-flores
e talvez mosquitos da dengue

parir é abrir uma fenda no tempo
o bebê cresce e eu vou ficando
do tamanho da formiga
que ele vai perceber
assim que pudermos ir à pracinha
que pudermos deixá-lo
mexer na terra
e comer a terra
depois que meu filho nasceu
tudo o que escrevo é para ele
ou sobre ele
ou apesar dele


Início

teu encantamento tem cheiro de dama da noite
gostava que esse enlevo me arrancasse da terra
como quem tira a bola de ferro dos pés de um prisioneiro
gostava que teu cheiro me acompanhasse
mais certo do que anjo da guarda
porque em ti deposito naturalmente
essa fé inabalável dos que têm fome
– Tem mais fé aquele que não tem

tu és um texto sem pontuação
mas com acentos
(não gosto da moda
de internacionalizar nomes
tirando-lhes os acentos)
são como binóculos
melhor: aparelhos de raio x
adivinham o que penso
ao mesmo tempo em que debocham
dos burocratas e doutores
na reunião

és tão assustadora
não tipo a menina que vomita verde
tipo montanha-russa
de que a gente toda gosta de ter medo
menos tu
que preferes exorcismo

gosto de tanta coisa em ti
que nem sei por onde terminar

Meio

gostam quando se veem
depois de tantos dias impedidos pelo trabalho
gostam de tudo que têm feito
até do que não gostam
escrevem:
“minha pele pede a sua
e sua boca sobre ela
minha pele fala comigo
quando você não está
minha pele está ficando louca
marca atos contra sua ausência
faz greve de transpiração”
um poema às vezes é um retrato
uma lembrança às vezes é um gozo
mas nada
nada mesmo
se compara ao dia em que se conheceram
penso até que não deveriam seguir
o curso natural dos encontros
porque nenhum momento
será melhor do que o dia em que se conheceram

Fim

na sua versão de romeu e julieta
só a julieta morria
catei meus cacos e disse
comigo não, violão
aqui você não se cria


Farândola

Se não puder dançar, não é minha revolução
Emma Goldman

será difícil acompanhar
a dança dos maltrapilhos
a fome e a sede dos saltimbancos
de tomar as ruas e dançar

tentaremos nos juntar
na mais sincera intenção
mas pode ser que nos dispensem
(exceto quem esteve por perto
a ponto de ser reconhecido)
outra parte condenará
mesmo sendo a favor
observando que falta direção
a sua direção, claro

em algum momento todos pensam
que é possível fugir
até que batem à nossa porta
pensam que seguir as regras
nos mantém livres
nos mantém vivos
até que batem à nossa porta
de um jeito ou de outro
sempre batem à nossa porta

mas somente em alguns lugares
entram sem algemas
(quando aquele menino
reivindicou o uso de algemas
demorei a entender:
a polícia não precisa delas
quando entra para matar)
arrombaram sua porta
violaram sua casa
seu corpo
quem assistia também sangrou
todos sangram juntos
mas somente a alguns lugares
não se pode voltar depois

aquele menino pergunta:
o que você quer?
ser sempre o que apanha
o mártir, o suicida?
quero ser pedra
noite e poema
esgarçar a fenda da reparação
romper em flor
cobrir o asfalto com nossas flores
até que nossas flores
não sejam mais arrancadas

será difícil acompanhar
a dança dos maltrapilhos
saltimbancos
os invisíveis
os inaudíveis
a patuleia
a súcia
aqueles que têm fome e sede
de tomar as ruas e dançar
sua própria coreografia


A casa IV

procura-se um fiador
com nome limpo na praça
salário bom
comprovado
imóvel quitado
averbado
no mesmo município
de quem precisa de um teto
e não pode comprar

ou terá de raspar as economias
de anos de trabalho
e agradecer o privilégio
de ser um assalariado

o importante é proteger o proprietário
caso não arque com o combinado
e seja despejado

a propriedade é sagrada
e sempre haverá uma marquise

A casa V

o mendigo encontra a marquise
e faz dela uma casinha
tem um colchão
banquinho
cobertor para o cachorro
papelão que imita porta
um retrato
alguns livros

todo mundo precisa de um cantinho
de mimos e lembranças
é possível ver uma casinha
sob um teto de estrelas
em qualquer marquise ocupada


Foto de fim de tarde

perdi os pássaros em seu voo das cinco
e a cabeça branca da eleanor rigby
acompanhando a volta do trabalho
de quem não pode fazer home office
de quem não teme o vírus

só alcancei o que é mais estático
ou aparentemente lento:
as nuvens, o sol

os filtros escondem o que se adivinha
tudo o que me derruba é o que
me põe em pé novamente
a confiança é um ninho
desfeito, refeito
parei de contar quando o tempo
desafiou a paciência
afinada com a precisão de um amador


Inacessível

não escrevo
o que mais me corrói
o que mais me entorna
e me põe do avesso
isso não consigo
nem saber
só sei que
do fio invisível que carregamos
e nos liga a tudo o que é vivo
esse fio que pode ser alma
ou espírito ou coração e cérebro
e nos liga também ao que é morto
porque é pelos mortos que seguimos
sem saber
e por isso sem saber se é útil
desse fio invisível teço as palavras
para materializar
espalhar as palavras pela casa
não me basta sentir o peito
nem fazer sexo
nem comprar uma bolsa
nem dar um mergulho
nem rezar
nem dormir

Arte de Maria Cristina Martins

Leia também, de Maria Cristina Martins e Tássia Veríssimo, o livro Entre Máscaras!
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Que um livro assim surja no meio de uma pandemia, e por causa dela, é auspicioso, e nos traz a oportunidade, por meio dele, iluminar nosso cotidiano mergulhado numa quarentena que desabou sobre nós. — Toinho Castro