Um jambeiro no Maranhão

Texto de Toinho Castro —


Estava eu a visitar uma comunidade quilombola lá no Maranhão, quando vi um jambeiro enorme. O chão de terra aos seus pés estava coberto do tapete aveludado e magenta de suas flores. Dias depois, pensei que deveria ter fotografado. Mas há coisas que não fotografo, pra guardar na memória. E contar pras pessoas como eu me recordo, sem o testemunho das fotografias. Sinto que as fotos, que tanto tiro por aí, sequestram minha imaginação, e paralisam o instante que deveria ser dinâmico na minha memória. Talvez digam os estudiosos da fotografia que ela é qualquer coisa, menos estática. Talvez seja verdade… mas ainda assim, cada fotografia que tiro me impede de lembrar o que vi.

Então, aquele jambeiro, com seu denso tapete de flores, lá na comunidade de recurso, no Maranhão, é um fotograma límpido e inacessível aos demais, na minha memória. Deve estar a caminho a tecnologia que lerá nossas mentes e fará JPGs da nossa memória, ou dos nossos sonhos. Mas por ora, o jambeiro é um redemoinho alojado na minha rede de neurônios. Em algum lugar do meu cérebro, que nem eu sei onde é. Algo que, no fim das contas, não existe.

Esse dia em que vi o jambeiro e seu tapete magenta de flores cobrindo o chão, era 4 de abril, aniversário do meu pai que já morreu. Data auspiciosa. Ao chegar no Maranhão, lembrei muito de seu Antonio, como todos o chamavam, porque para lá ele diversas vezes, ao longo de seus trajetos Brasil adentro. Íamos, quando eu pequeno, para o aeroporto, para poder falar com ele nas cabines da Telpe, a companhia telefônica de então. Do outro lado da linha, meu pai em São Luís, ou Imperatriz. Sua voz, agora um fantasma. Escrevi um poema sobre isso no Imbiribeira, meu livro que escrevi pra ele, pra minha mãe, para meus irmãos.

meu pai, seu antonio, está morto
mas bem poderia estar em belém
ou imperatriz, ou mesmo santarém
olhando os navios no cais do porto

posso recuperar a sua voz espectral
numa ligação direta a distância
por meio de uma mágica substância
que torne tudo ainda mais irreal

enfim, a morte do meu pai já se deu
restamos minha mãe, meus irmãos e eu
e uma certa noite congelada na memória

noite esquecida dos livros de história
no aeroporto minha mãe, meus irmãos e eu
ouvindo a voz do meu pai que já morreu

É possível que meu pai, seu Antonio, tenha passado por Santa Rita, onde fica Recurso e seu jambeiro (agora meu) no longo caminho entre São Luís e Imperatriz. É possível que existisse já esse jambeiro, próximo à ferrovia, talvez um jambeiro filhote ainda. Jamais saberemos. Jamais saberei.

Lembrou-me, pois, esse jambeiro, os jambeiros que minha mãe plantou, no edifício Inês, em que vivíamos na Imbiribeira. Três jambeiros que cresceram frondosos, essa palavra maravilhosa, e que produziram seus tapetes de flores. Até que foram cortados por uma vizinha que achava que as flores e folhas eram sujeira. Violência é o nome disso. Minha mãe sentiu-se particularmente atingida. Era algo contra ela, contra sua alma. Ela amava os jambeiros e seus veludos magenta sobre o chão. Queriam cimentar tudo, cessar as flores e os sombreados. Eliminar essa coisa incômoda chamada vida. Talvez seja o jambeiro nossa planta familiar. Por isso me emocionei ao vê-lo em Recurso, no dia do aniversário do meu pai, que morreu. Num mundo remoto que ele habitou, percorreu, sem ter tirado fotos.

De volta ao Rio, dias atrás, vi numa rede social as fotos que uma amiga, Angela, publicou da floração dos jambeiros. Ariano Suassuna fala num poema dos “…ouros das acácias do Recife / nos cabelos de sol-pela-manhã“. Joaquim Cardozo e Mauro Mota escreveram sobre os cajueiros e não faltou quem cantasse o verde dos canaviais. Não sei se há poemas sobre os jambeiros e sua floração atapetando nossas ruas, nossas memórias. O jambeiro distante, lá em Recurso, se conecta ao meu pai, e aos jambeiros de minha mãe e sua alma.

Arrastamos assim os vagões dos dias, todos ligados uns aos outros. Cada um carregando sua preciosidade, uma BR no Maranhão, a voz de seu Antonio na cabine da Telpe, dona Lenira lamentando seus jambeiros perdidos.

A leitura do mundo,
da nossa rua e dos vizinhos,
o significado das árvores cortadas
no jardim de nosso prédio
e o jasmim noturno
passavam através de suas palavras.

E agora, também, esse jambeiro altivo, tão verde, majestosamente adornado por uma densa camada de flores no chão de terra aos seus pés. Flores como se fossem sua sombra, circular, dissipando-se nas bordas como as bordas de uma galáxia se desfazendo no oco do universo. Isso tudo diante de uma casa simples, porta e janela, paredes brancas, que a chuva salpicou de barro, ao cair por tantos anos. Essa é a imagem que eu guardo. E que agora, você, que me lê, também guarda. Já de outro jeito, de um jeito que só você sabe e vê. E essa transformação do que eu imagino naquilo que você imagina, é o que me alegra.