Ela não sabe que existe o Pinterest. Poderia colecionar imagens de nuvens

Texto de Salma Soria


Vento de ligeiro frio. Todos sentem igual. Nada pode com o vento. O acumulo de ar beneficia as pedras, as plantas, seres que habitam. Tudo agora é qualquer coisa. Alguém a faz olhar automaticamente para o seu instrumento de trabalho, um tabuleiro de frutas repousado na altura dos quadris, os ponteiros dos relógios marcam as horas, o tempo segue a norma, silencioso pacto coletivo de não se importar.

Seus olhos são alienados. Nem buzinas, nem megafones rompem a concentração dos sonhos de dentro. O vento desconcerta os cabelos, a ponta de seu longo vestido vermelho flutua perto da parede. Uma placa de trânsito cai rente ao ombro dela.

“São três por cinco senhora”.
“Aqui está”.
“Obrigado senhora”.

Naquela manhã tudo reluzia com boa vontade. O silêncio, forjado como aceno de paz, se ausenta em meio a gritaria de compre isso compre aqui. A rua inteira se confunde com cheiro de peixe, laranja, melancia, temperos. Chão molhado de gelo. A tranquilidade é inodora.

“Tá fresquinho?”.
“Sim, senhora, é de hoje”.
“Não quer levar mais alguma coisa?”
“Quero não, Selene, muito obrigada!”
“Está bem. Até mais!”.

Sempre que termina de embrulhar as frutas vendidas, Selene olha para o céu. Quer fazer umas perguntas. Mas não consegue saber o que falar. O céu é tão longe.

O barraqueiro ao lado se preocupa com os instantes em que Selene se ausenta por longos períodos olhando para cima. Até que ela percebe, isso sempre acontece, não gosta que a controlem, não gosta de ser observada. Disfarça arrumando as frutas. E o barraqueiro também disfarça:

“Ei, será que chove? Tá com cara né?”.
“Tô preocupada porque deixei a roupa no varal”.

Com o dia translúcido e céu sem neblina, todo mundo sabia que jamais choveria naquele dia inteiro de julho. Já comentam entre as barracas sobre a sanidade mental dela que evita ao máximo olhar para o céu quando todo mundo a olha. É quando abaixa a cabeça, pega um pequeno caderninho e anota uns detalhes para não se perder.

como as nuvenzinhas se partem pelo meio?
por que não caem?
é Deus que assopra as nuvens? Quem cuida delas?
a fumaça copia o algodão celeste, mas esse fumaceiro não consegue chegar até o céu. nem fumaça nem nuvem o céu aspira a queda igual o asfalto aspira a chuva e o ar aspira as fruta

Por conta da lona preta que forra a casa onde vez ou outra sai voando por aí é que aprendeu a observar no telhado que o céu existe. Gosta dos formatos decorativos de nuvens. Mora só. Sonha com uma casa inteirinha feita de crochê. Esse sonho, quer materializar e sempre quando a vontade bate forte, contempla sozinha no meio da sala.

“Seria tão bom deixar as coisas de casa macias”.

Se alimenta das frutas que sobram no fim do expediente e de vez em quando se dá ao luxo de comer uma fritura. Bolinho. De chuva. Quando come esses bolinhos, gosta de fazer um ritual que a faz sentir como madame: pega a única xícara da casa, não sabe dizer se aquilo é porcelana ou plástico, até que tem um brilho translucido entre a amarelidão crescente das bordas, pega a única colherzinha do armário enferrujado, esquenta a água na chaleira de cabo quebrado, colhe umas cinco folhinhas de hortelã, coloca no fundo da xícara, joga a água fervente, se fascina em ver parte da água evaporar pela cara enquanto sobe um aroma gostosinho, pega os cinco bolinhos que preparou, coloca sobre o papel toalha, cuidadosamente carrega os bolinhos envoltos no papel e a xícara, senta na rede estendida no meio da sala e tilinta por vários minutos a colherzinha na xícara, assopra delicadamente, esperando esfriar. O coração é tomado pelo alumbramento que vem da cara recém aquecida.

“Vaporzinho bom”

Balança a rede com as próprias pernas. Mastiga devagarinho o bolinho para não acabar o momento que nem sabe dizer, só é gostosinho. Se um dia perguntarem a ela, coisa que nunca fizeram, Selene gostaria de dizer que seu prato preferido é bolinho de chuva. Só não gosta de peixe. Nem de peixaria. O motivo foi um pescador que fez o que fez com ela, coisa que nem gosta de explicar.
Os dias passam e Selene se entrega ao vento manso, sem contramão. Tem vontade de ser vento, de se germinar por ele mesmo sem saber se essa semente de ventanias dará frutos. Certa vez, um único moço perguntou porque ela gosta tanto de olhar para o céu.

“Acho que as nuvens distraem para a gente não saber de que cor é o vento. Tu sabe dizer se tem como se esconder pelo vento?”
“O vento existe para ouvir ele, né?”

Nesse dia, o moço, coitado, balançou a cabeça negativamente e não soube responder a nenhuma das perguntas anteriores.
Nos fins de semana gosta de sol, de apreciar beija-flores nos galhos das manhãs.

“Tinha um beija-flor aqui, mas já foi embora”.

Tem um terreno baldio ao lado da casa. A vizinhança escolheu esse lugar para descartar o lixo. Uma vez Selene achou cacos prateados pelo chão, possivelmente bolas de natal quebradas. Recolheu uma a uma e as guardou para enfeitar pelas paredes no dia que tiver uma parede de verdade.

Ela pensa e pensa profundamente no quão longe uma nuvem pode chegar, essa equação sem resposta, sem mais ou menos qualquer outra coisa porque se atrapalha e não consegue saber como. Tem vezes que a ideia se conjuga aflita. Especialmente quando um tomate cai sobre os pés. E isso sempre acontece pela feira. As vísceras molhadas do tomate entre os dedinhos do pé fazem com que se apresse e jogue asfalto por cima da pele para estancar o gelado.

Adora quando passa o Voyage branco 1988 do vizinho e o carburador expelindo fumaça negra. O perfume do escapamento dá uma alegria. O vizinho acelera, desesperado, mas é aí que ela corre atrás dele com toda velocidade que consegue só para desfrutar um pouco mais do vapor arranhado. E quanto mais o motorista acelera, a dura fumaça sobe e um festival de diversas nuances em nuvens escuras se torna perceptível ao olho. De todo mundo.

Selene nunca para de correr atrás desse carro. Corre até as pernas bambearem. É quando a tosse começa, alguma coisa do olho começa a pinicar, o frio de dentro emerge e o corpo todo, subitamente desmaiado, adere ao chão da rua. Neste barro atormentado de tantas marcas é que vez ou outra consegue chegar mais perto de um céu que só ela sabe. Se soubesse que existe o Pinterest, poderia colecionar imagens de nuvens.